28.7.14

FUGUE DE MORT

Lait noir du petit jour nous le buvons le soir
nous le buvons midi et matin nous le buvons la nuit
nous buvons et buvons
nous creusons une tombe dans les airs on y couche à son aise
Un homme habite la maison qui joue avec les serpents qui écrit
qui écrit quand il fait sombre sur l’Allemagne tes cheveux d’or Margarete
il écrit cela et va à sa porte et les étoiles fulminent il siffle pour appeler ses chiens
il siffle pour rappeler ses Juifs et fait creuser une tombe dans la terre
il nous ordonne jouez maintenant qu’on y danse
Lait noir du petit jour nous te buvons la nuit
nous te buvons midi et matin nous te buvons le soir
nous buvons et buvons
Un homme habite la maison qui joue avec les serpents qui écrit
qui écrit quand il fait sombre sur l’Allemagne tes cheveux d’or Margarete
Tes cheveux de cendre Sulamith nous creusons une tombe dans les airs on y couche à son aise
Il crie creusez plus profond la terre vous les uns et les autres chantez et jouez
il saisit le fer à sa ceinture il le brandit ses yeux sont bleus
creusez plus profond les bêches vous les uns et les autres jouez encore qu’on y danse
Lait noir du petit jour nous te buvons la nuit
nous te buvons midi et matin nous te buvons le soir
nous buvons et buvons
un homme habite la maison tes cheveux d’or Margarete
tes cheveux de cendre Sulamith il joue avec les serpents
Il crie jouez la mort plus doucement la mort est un maître d’Allemagne
il crie plus sombre les accents des violons et vous montez comme fumée dans les airs
et vous avez une tombe dans les nuages on y couche à son aise
Lait noir du petit jour nous te buvons la nuit
nous te buvons midi la mort est un maître d’Allemagne
nous te buvons soir et matin nous buvons et buvons
la mort est un maître d’Allemagne ses yeux sont bleus
il te touche avec une balle de plomb il te touche avec précision
un homme habite la maison tes cheveux d’or Margarete
il lâche ses chiens sur nous et nous offre une tombe dans les airs
il joue avec les serpents il rêve la mort est un maître d’Allemagne
tes cheveux d’or Margarete
tes cheveux de cendre Sulamith
Bucarest, 1945.

24.7.14

Os dias bons ...

Live Aids, Julho 1985

23.7.14

As imagens bastam a si próprias

As imagens bastam a si próprias. Elas são a sua própria resposta. Porque é impossível recusar certas imagens. Estão demasiado saturadas na sua ingenuidade para não revelarem muito daquilo que calam: a bandeira das riscas e das estrelas a ondular na ilha de Iwo Jima; a pegada monstruosa de Neil Armstrong na superfície da Lua; os martelos caseiros com cabos de madeira a desfazer em pedaços o Muro de Berlim. Na sua surpreendente profundidade, seria necessário poder decifrar ao mesmo tempo a situação concreta que escondem, os valores que oferecem como verdadeiros e nos transmitiram, e só em última instância, sob camadas e camadas de significação, como o seio veio mais íntimo e mais secreto, como uma nascente subterrânea, a operação real que se procurou e acerca da qual as imagens não oferecem mais do que uma tradução simbólica: a Vitória, o Orgulho, a Liberdade. De modo que consigo intuir que o holocausto desta manhã, no outro lado do oceano, implicará uma nova dimensão do alfabeto icónico:a Morte no Paraíso sempre foi um tema predilecto para os profetas.
A nossa doença, Alphone, a herdada  do século mais terrível da hermenêutica. Nada provoca tanto desconsolo como uma palavra supérflua. O meu anseio de pintor, que foi sempre mostrar o mundo na sua feroz intensidade, entrou e continua a entrar em conflito com o nosso tempo, que se construiu como uma tempo de comerciantes de palavras. Hoje sei que tenho razão. Mas, por isso, paguei uma pesada portagem.
O lugar de onde provenho é um lugar órfão de palavras, um lugar que adquire pleno sentido no gesto do desenho, no matiz da cor, na profundidade da matéria. E o resto, como disse o grande bardo, deveria ser silêncio.
Claro que o silêncio nos esmaga. Detectamos no silêncio uma incomodidade natural que nos obriga a arrastar-nos por um bosque de palavras. Lembras-te do que escreveu o velho Goethe no fim da sua vida? " Tudo está aí e eu não sou nada". Essa é a minha religião (...)

Ricardo Menéndez Salmón, in A luz é mais antiga que o amor, Uma carta (1) 

21.7.14

o Mundo ...

fotografia de Simon Proctor

... com anjos a cair

O amor afirma, o ódio nega

"O amor afirma, o ódio nega. Mas por cada afirmação há milhentas de negação. Assim o amor é pequeno em face do que se odeia. Vê se consegues que isso seja mentira. E terás chegado à verdade."

Vergílio Ferreira in Escrever 

Os dias bons


Esse que humano foi como um deus grego

Esse que humano foi como um deus grego
Que harmonia do cosmos manifesta
Não só em sua mão e sua testa
Mas em seu pensamento e seu apego
Àquele amor inteiro e nunca cego
Que emergia da praia e da floresta
Na secreta nostalgia de uma festa
Trespassada de espanto e de segredo
Agora jaz sem fonte e sem projecto
Quebrou-se o templo actual antigo e puro
De que ele foi medida e arquitecto
Python venceu Apolo num frontão obscuro
Quebrada foi desde seu eixo recto
A construção possível do futuro


Sophia de Mello Breyner Andersen in Dual, 1972

15.7.14

a Ilha Misteriosa

Os dias bons...

coração


"É o coração que honra o homem e não a opinião."

F. Schiller

Vieirinha

 os dias bons....

6.7.14

O Labirinto da Saudade


“Que o português médio conhece mal a sua terra – inclusive aquela que habita e tem por sua em sentido próprio – é um facto que releva de um mais genérico comportamento nacional, o de viver mais a sua existência do que compreendê-la.”

“Citar um autor nacional, um contemporâneo, um amigo ou inimigo, porque nele se aprendeu ou nos revimos com entusiasmo, é, entre nós, uma raridade ou uma excentricidade como usar capote alentejano. A referência nobre é a estrangeira por mais banal que seja, e quem se poderá considerar isento de um reflexo que é, por assim dizer, nacional?”

“Os Portugueses vivem em permanente representação, tão obsessivo é neles o sentimento de fragilidade íntima inconsciente e a correspondente vontade de a compensar com o desejo de fazer boa figura, a título pessoal ou colectivo.”

“Mas seja qual for a interpretação ideológica de Camões, não é possível, para ninguém, separar o seu canto épico da apologia histórica de um povo enquanto vanguarda de uma fé ameaçada na Europa do tempo e de um império igualmente guarda-avançada da expressão comercial e guerreira do Ocidente. É essa a «matéria» textual e moral do Poema.”

“Em princípio, todo o português que sabe ler e escrever se acha apto para tudo, e o que é mais espantoso é que ninguém se espante com isso.”

Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Gradiva, 2005.

2.7.14

o Mar luminoso das palavras


O Rei de Ítaca

A civilização em que estamos é tão errada que
Nela o pensamento se desligou da mão

Ulisses rei de Ítaca carpinteirou seu barco
E gabava-se também de saber conduzir
Num campo a direito o sulco do arado

Sophia de Mello Breyner Andresen
O Nome das Coisas (1977)

1.7.14

Winslow Homer, The Trapper

Luto por uma Novidade de Espírito

Procuro me manter isolada contra a agonia de viver dos outros, e essa agonia que lhes parece um jogo de vida e morte mascara uma outra realidade, tão extraordinária essa verdade que os outros cairiam de espanto diante dela, como num escândalo. Enquanto isso, ora estudam, ora trabalham, ora amam, ora crescem, ora se afanam, ora se alegram, ora se entristecem. A vida com letra maiúscula nada pode me dar porque vou confessar que também eu devo ter entrado por um beco sem saída como os outros. Porque noto em mim, não um bocado de fatos, e sim procuro quase tragicamente ser. É uma questão de sobrevivência assim como a de comer carne humana quando não há alimento. Luto não contra os que compram e vendem apartamentos e carros e procuram se casar e ter filhos mas luto com extrema ansiedade por uma novidade de espírito. Cada vez que me sinto quase um pouco iluminada vejo que estou tendo uma novidade de espírito. 
Minha vida é um reflexo deformado assim como se deforma num lago ondulante e instável o reflexo de um rosto. Imprecisão trémula. Como o que acontece com a água quando se mergulha a mão na água. Sou um palidíssimo reflexo de erudição. Minha receptividade se afina registrando sem parar as concepções de outros, refletindo no meu espelho os matizes sutis das distinções entre as coisas da vida. Eu que sou um resultado do verdadeiro milagre dos instintos. Eu sou um terreno pantanoso. Em mim nasce musgo molhado cobrindo pedras escorregadias. Pântano com seus sufocantes miasmas intoleravelmente doces. Pântano borbulhante. 

Clarice Lispector, in 'Um Sopro de Vida'