27.2.09

Nada se repete

Audrey Hepburn em Breakfast at Tiffany's, 1961

Nada se repete, nem a sombra, nem o passo, nem o olhar. Cada dia é feito à nossa imagem, à imagem da diversidade e, no entanto, tudo se parece repetir num ritual de gestos, afazeres, pensamentos. Não percebemos como em cada dia, há sempre algo de diferente, um pormenor na grandeza, um pequeno grão que vai lentamente redesenhando o passado e contruíndo o futuro.
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26.2.09

Homens


"(...) Elogiemos a vossas mãos, capazes de pegar em objectos frágeis, de os saber conservar sem os estragar, capazes de carregar com fardos e limpar um caminho afastando os obstáculos pesados. E que tratam o corpo dos homens e dos animais e cuidadosamente conseguem afastar uma dor do mundo. Coisas ilimitadas vos saiem das mãos, algumas boas, que um dia hão-de interceder por vocês.
Também são dignos de admiração quando se inclinam sobre os motores e máquinas e as fazem e entendem e explicam, até que à força de tanto explicar tudo se torna novamente um mistério. Não disseste que se tratava deste princípio e daquela potência? Não foi bonito e bem dito? Ninguém jamais poderá voltar a falar assim de correntes e potências, de magnetes e mecânicas e dos núcleos de todas as coisas.
(...) Ninguém falou assim dos homens, das suas condições de vida, da sua servidão, dos seus bens, das suas ideias, dos homens sobre a terra anterior e uma outra que ainda há-de vir. Era acertado falar assim e reflectir tanto.
(...) Ah, ninguém sabia jogar tão bem como vocês, seus monstros! Foram vocês que inventaram todos os jogos, jogos de números e jogos de palavras, jogos de sonhos e jogos de amor."

Ingeborg Bachmann in Trinta Anos, 1961
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It's a man's man's man's world

This is a man's world, this is a man's world
But it wouldn't be nothing, nothing without a woman or a girl

You see, man made the cars to take us over the road
Man made the trains to carry heavy loads
Man made electric light to take us out of the dark
Man made the boat for the water, like Noah made the ark

This is a man's, a man's, a man's world
But it wouldn't be nothing, nothing without a woman or a girl

Man thinks about a little baby girls and a baby boys
Man makes then happy 'cause man makes them toys
And after man has made everything, everything he can
You know that man makes money to buy from other man

This is a man's world
But it wouldn't be nothing, nothing without a woman or a girl

He's lost in the world of man
He's lost in bitterness

'It's a man's man's man's world' por SEAL

24.2.09

Concentrar


Às vezes é preciso viver-se para uma só coisa, um só projecto, um só pensamento. Parece uma ideia redutora, mas quando a pessoa se concentra no único, quando o deixa evoluir em si, percebe que o universo pessoal se expande e o quotidiano se apresenta um pouco diferente, até mais rico. É como se fizessemos o movimento contrário ao da vida contemporânea que cria uma constante dispersão, que nos invade com mil coisas e por conseguinte com o vazio. É um resitir à fragmentação que parece corromper a individualidade. Não é um isolamento, mas uma concentração de força, de energia. É um sentido para gerar um mundo, uma nova forma de olhar, um acrescentar de algo ao todo.


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22.2.09

O Bêbado e a Equilibrista


Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos...

A lua
Tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel

E nuvens!
Lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco!
Louco!
O bêbado com chapéu-coco
Fazia irreverências mil
Prá noite do Brasil.
Meu Brasil!...

(...)

por Elis Regina

21.2.09

Da conversa de ontem

pintura de Claude Monet, Portrait of Camille Monet, 1873

Todos nós no nosso pequeno-grande mundo fundado a partir de uma matriz, de um nome. Essa matriz é um estar ao qual nos habituámos que nem sempre define o que realmente somos no presente, já que tantas vezes nos sentimos insatisfeitos com esse fato que já não nos serve. Mas persistimos em manter essa forma, não sei se por medo ou se por inacção. E prosseguimos, mascarando a inércia e a falta de coragem com os ecos do nosso drama privado. Alguns detalhes dessa história já não são completamente reais, por tanto os repetirmos parece que ganharam algo de abstrato. Há detalhes que já não sabemos se pertenceram realmente à nossa vida, se a uma força de repetir a mesma interpretação. Mas essa matriz é como um lar, mesmo que nos traga insatisfação, conta-nos a nossa história, dá-nos uma identidade. Será então isso? Resitimos porque temos medo de perder uma identidade? Será a nossa ideia de identidade mais importante do que o respeito por uma nova voz interior que quer ser vida?

Os braços crescem, o pensamento alarga-se, a vida inteira se procura o horizonte, a pergunta; há sempre a presença de um mistério nas nossas acções, do que ainda não se revelou. Porém, nem sempre a nossa vida se expande nessa conformidade. Fica ali, no nosso "lar", a crescer às escuras. Pressente-se injustiça em tudo isto, porque há desarmonia, abandono, a morte do que não caminhou.



19.2.09

Brasília


"Brasília é construída na linha do horizonte. Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para aquele mundo. Nós somos todos deformados pela adaptação à liberdade de Deus. Não sabemos como seríamos se tivéssemos sido criados em primeiro lugar e depois o mundo deformado às nossas necessidades. Brasília ainda não tem o homem de Brasília. Se eu dissesse que Brasília é bonita veriam imediatamente que gostei da cidade. Mas se digo que Brasília é a imagem de minha insonia vêem nisso uma acusação. Mas a minha insonia não é bonita nem feia, minha insonia sou eu, é vivida, é o meu espanto. É o ponto e vírgula. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil: eles ergueram o espanto inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério."
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Clarice Lispector
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Esplendor

Anita Ekberg nas filmagens de La Dolce Vita, Roma, 1960

Todas as vidas têm um tempo de esplendor, mas é quase sempre o esplendor na vida dos outros. O esplendor vivido não é isso, é apenas o tempo da vida ilimitada, como uma árvore iluminada ou um sol de frente. O esplendor é um fogo subtil que ilumina o universo, é uma cidade eterna mergulhada na água. É a glória do que é simples e a simplicidade do que é sofisticado.
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18.2.09

Mudar

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Há um momento em que queremos mudar tudo o que é possível mudar. Há um momento em que pensamos saber os passos a seguir. Tudo se clarifica. Compreendemos que as escolha decisivas da nossa vida são apenas consequências do medo de agir ou de ficarmos sós. O mesmo será dizer consequência do movimento para nos escondermos ou para aparecermos à luz do mundo. Esse momento vem, de tempos a tempos, como uma voz da nossa natureza mais profunda, de algures, atrás no tempo. Queremos então afastar tudo o que em nós corrói a simplicidade do dia, tudo o que em nós estagnou, tudo o que em nós já não tem vida. Mesmo que aos olhos dos outros nada se tenha alterado, sabemos, naquele momento, que partimos para uma nova etapa. Porque, de repente, ensinamos os nossos olhos a ver de novo.


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17.2.09

...from across the sea ....


The summer wind, came blowin' in - from across the sea
It lingered there, so warm and fair - to walk with me
All summer long, we sang a song - and strolled on golden sand
Two sweet hearts, and the summer wind

Like painted kites, those days and nights - went flyin' by
The world was new, beneath a blue - umbrella sky
Then softer than, a piper man - one day it called to you
And I lost you, to the summer wind

The autumn wind, and the winter wind - have come and gone
And still the days, those lonely days - go on and on
And guess who sighs his lullabies - through nights that never end
My fickle friend, the summer wind

The Summer Wind por Madeleine Peyroux


16.2.09

A vida, sentido de oportunidade


O que somos para além do tempo que esculpe e envelhece o nosso corpo? É uma das questões reflectidas no filme O Estranho caso de Benjamin Button . Baseado num conto de E F. Scott Fitzgerald publicado em 1921, este filme é realizado por David Fincher e conta com excelentes interpretações de Brad Pitt e Cate Blanchett.
Quantas vezes o espírito não se sente aprisionado pelo corpo? Eu diria quase sempre. Mas por mais que nos aprisione é o corpo o veículo de expressão, de contacto com o mundo, é ele que nos dá, enfim, a noção de estarmos vivos.
Sentimos pela vida toda o corpo como o limite, o único limite, para um espírito que teima em resistir, que envelhece e rejuvenesce tantas vezes ao dia. Há um momento em que o corpo já não corresponde a essa agilidade, porque não é livre na sua condição real. É essa a melancolia, a de viver entre um princípio e um fim, mesmo que esse tempo seja invertido, fragmentado. Somos a infinita possibilidade cercada pela irreversibilidade do tempo. A arte de viver é relembrada neste filme como o sentido de oportunidade de um encontro. Cada um desses encontros são como pontes, milagres no cruzamento de outras vidas com a nossa. Muitas vezes a um espírito atormentado pelos limites do corpo e pela passagem do tempo, escapa-lhe o mais importante: viver. Estes personagens sabiam que esse encontro é breve, que o sentido da oportunidade é curto e que só isso nos é dado.



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15.2.09

O passeio dos poetas

The Mall, Central Park, New York, 1905

The Mall, Central Park, New York, actualidade

Existem lugares que mesmo que nunca os tenhamos visitado, fazem parte de nós, do nosso imaginário. São reservas, energias de uma esperança que parecem guardar o percurso dos homens pelo tempo. Parecem talhados para nos proteger do caos, do vazio, da desordem. São criados para dar um sentido à caminhada. Estão lá, à espera que alguém que os encontre como quem encontra o sol, a brisa, as árvores. The Mall , o passeio dos poetas, como alguém já lhe chamou, é para mim um desses lugares.
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14.2.09

I'll Close My Eyes


I'll Close My Eyes - Cherokee - Joanie Sommers

12.2.09

O encanto perdido


Na imagem vemos Gene Tierney . A fotografia será dos inícios dos anos 40 ou mesmo do final da década de 30. É fácil advinhar que a sua carreira estava ainda a começar. Há no seu rosto qualquer coisa de autêntico que as cameras e a fama ainda não haviam tomado. Há uma promessa no ar.

Nesse tempo, parece que ainda existiam muitos traços a definir, muitos caminhos a percorrer, muita vida por experimentar. Vivia-se a infância de qualquer coisa que hoje me parece decadente, sem encanto. Talvez não seja somente na pureza do preto e branco que desvendamos tudo isto, mas na vida que se mostra para além deles.

E porque será que nos parece mais distante este tempo do que outro anterior? Talvez porque desse outro tempo mais recôndido escasseiem as imagens para o confrontarmos e neste temos já a imagem do nosso tempo, mas com tudo o que perdemos nestes 60 anos. Se o pensamento é quase sempre uma imagem, seremos capazes de encontrar um novo sentido no invisível?

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11.2.09

Tudo

Gene Tierney, anos 40, fotografia de John Rawlings

Tudo me é uma dança em que procuro
A posição ideal,
Seguindo o fio dum sonhar obscuro
Onde invento o real.

À minha volta sinto naufragar
Tantos gestos perdidos
Mas a alma, dispersa nos sentidos,
Sobe os degraus do ar...


Sophia de Mello Breyner
Poesia I, 1944


O Tempo de todos os Tempos

Fotografia de Yann Arthus-Bertrand

Vivemos o tempo de todos os tempos. Com a expansão das redes de comunicação, com o acesso a cascatas intermináveis de imagens e de informação somos tocados pela dispersão e obrigados a abrigar todos os tempos dentro do nosso. Temos uma obsessão pelo tempo real, pelo registo dos acontecimentos, pelo novo que mais não é um sintoma do medo de já não nos restar mais nada com que sonhar. Será então isso? Estaremos nós já suspensos na dispersão? Estará a humanidade à deriva dos acontecimentos como se eles tivessem tomado as rédeas ao "destino"? Estará a Humanidade sem energia e sem meios para idealizar um caminho para si mesma?
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Vejo-te chegar e dou-te as boas vindas.
São sempre precisos dois para pensar, nem que seja o que fomos e o que seremos.
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