.Fazer... A memória dos deuses, agora que se nos desfez como forma de um refúgio, de uma justificação, reinventa em nós o sonho do seu poder: criar é afirmar no homem o sonho de divinização. Criar um império, uma obra de arte, um filho, um arranjo de saber, um novo apara-lápis... E à ambição de impor ao mundo uma nova ordem, ao desejo angustiado de nos furtarmos a um domínio universal, de nos afirmarmos únicos, nós juntamos a pequena ambição de sermos eternos.
Como se a nossa vida não fosse irredutível e o objecto que se desprende das nossas mãos, comparticipando da nossa presença, do calor do nosso sangue, comparticipasse também da nossa consciência... Mas a pessoa que somos e sabemos, a presença de nós é em nós que nos morre.
E depois, meu amigo, enquanto temos um instrumento na mão, não sabemos que temos um instrumento na mão... Todo o gesto, enquanto tal, enquanto se executa, limita-se em si mesmo, esquece a sua origem: toda a acção trai a força que a gerou, porque ela é em si própria um princípio e um fim.
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Vergílio Ferreira, in Carta ao Futuro