As pessoas fixam-se nos números da crise, na forma como inverter os terríveis números que nos atiram para o abismo, as percentagens que nos poêm em perigo. As reformas a fazer são, sobretudo, para atingir números satisfatórios, para que nos possamos manter dentro dos parâmetros aceitáveis. E não há tempo a perder! No mundo de hoje já não há esse luxo "do tempo característico de cada país". Corram que os números ditam o nosso destino. Somos isso: somas, substrações, multiplicações. Ah, sim, e também divisões!
30.11.10
28.11.10
27.11.10
Com Fúria e Raiva
Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras
Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada
De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse
Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra
.
Sophia de Mello Breyner Andresen in O Nome das Coisas
Zayed National Museum
Museum of Islamic Art, Doah
esta uma imagem do interior do museu inaugurado em 2008, projectado pelo arquitecto I.M. Pei transporta-nos para um sonho das mil e uma noites. O dinheiro, o deserto e a antiga noite estrelada do Médio Oriente deve provocar esse efeito. Uma tentativa do Qatar para dar uma imagem moderna do Mundo Árabe ao resto do mundo.
26.11.10
Europa
“ Nunca tantos deveram tanto a tão poucos” – A frase de Winston Churchill foi pronunciada há 70 anos.
Os “tão poucos” eram os 2900 jovens pilotos da Royal Air Force que iriam enfrentar a superioridade numérica da força aérea alemã, a Luftwaffe, nos céus do Reino Unido.
O confronto ficou conhecido como “a batalha de Inglaterra” e foi decisivo. As palavras de Churchill, a 20 de Agosto de 1940, ficaram para a História: “Nunca, no campo dos conflitos humanos, tantos deveram tanto a tão poucos.”
Entre Julho e Outubro de 1940, a força aérea britânica impediu que o país fosse ocupado pelos nazis. No 70º aniversário do discurso de Churchill, um “Spitfire” e um “Hurricanes” voltaram a cruzar os céus de Londres.
Copyright © 2010 euronews
Os “tão poucos” eram os 2900 jovens pilotos da Royal Air Force que iriam enfrentar a superioridade numérica da força aérea alemã, a Luftwaffe, nos céus do Reino Unido.
O confronto ficou conhecido como “a batalha de Inglaterra” e foi decisivo. As palavras de Churchill, a 20 de Agosto de 1940, ficaram para a História: “Nunca, no campo dos conflitos humanos, tantos deveram tanto a tão poucos.”
Entre Julho e Outubro de 1940, a força aérea britânica impediu que o país fosse ocupado pelos nazis. No 70º aniversário do discurso de Churchill, um “Spitfire” e um “Hurricanes” voltaram a cruzar os céus de Londres.
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22.11.10
Aprender a Rezar na Era da Técnica
Lisboa, 22 nov (Lusa) -- O escritor Gonçalo M. Tavares é o vencedor do Prémio do Melhor Livro Estrangeiro publicado em França em 2010, com o romance "Aprender a Rezar na Era da Técnica", disse hoje à Lusa o seu editor, Zeferino Coelho.
Publicado em Portugal pela Caminho em 2007, o quarto romance da série "O Reino" (depois de "Um Homem: Klaus Klump", "A Máquina de Joseph Walser" e "Jerusalém"), chegou este ano às livrarias francesas com o título "Apprendre à Prier à l'Ère de la Technique", numa tradução de Dominique Nédellec, e foi também finalista de outros dois prestigiados prémios literários franceses: Femina e Médicis.
Publicado em Portugal pela Caminho em 2007, o quarto romance da série "O Reino" (depois de "Um Homem: Klaus Klump", "A Máquina de Joseph Walser" e "Jerusalém"), chegou este ano às livrarias francesas com o título "Apprendre à Prier à l'Ère de la Technique", numa tradução de Dominique Nédellec, e foi também finalista de outros dois prestigiados prémios literários franceses: Femina e Médicis.
Trago-te ao Espaço da Janela
.
Trago-te ao espaço da janela.
De novo surgiram deste lado da rua.
Em voz baixa disse «uma alucinação». A
única resposta foi entrar em casa
subir ao quarto mudar de roupa
ser jovem com quem soube bem ser jovem
sábio com quem quiseste ser sábio
velho com os velhos.
Trago-te para perto da janela
o rio vê-se daqui.
A cor da terra circula.
.
«Talvez seja a morte» «não»
«se for a morte o coração baterá mais ou menos forte».
O corpo
não tem grande lugar.
Trago-te ao espaço da janela.
De novo surgiram deste lado da rua.
Em voz baixa disse «uma alucinação». A
única resposta foi entrar em casa
subir ao quarto mudar de roupa
ser jovem com quem soube bem ser jovem
sábio com quem quiseste ser sábio
velho com os velhos.
Trago-te para perto da janela
o rio vê-se daqui.
A cor da terra circula.
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«Talvez seja a morte» «não»
«se for a morte o coração baterá mais ou menos forte».
O corpo
não tem grande lugar.
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João Miguel Fernandes Jorge in Meridional
João Miguel Fernandes Jorge in Meridional
20.11.10
O Consumo não é Invenção do Capitalismo
,
Ninguém se encosta a si próprio tão
intensamente como quando sofre ou como
quando entra num mercado de uma
das nossas grandes cidades. 0 comércio
é feito de uma linguagem inesgotável:
sobra de um lado, falta de outro. 0 consumo,
por mais que o repitam, não é invenção do capitalismo:
os deuses formaram homens incompletos,
com estômago, frio e vaidade, como queriam outro resultado?
.
intensamente como quando sofre ou como
quando entra num mercado de uma
das nossas grandes cidades. 0 comércio
é feito de uma linguagem inesgotável:
sobra de um lado, falta de outro. 0 consumo,
por mais que o repitam, não é invenção do capitalismo:
os deuses formaram homens incompletos,
com estômago, frio e vaidade, como queriam outro resultado?
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Gonçalo M. Tavares in Uma Viagem à Índia
Gonçalo M. Tavares in Uma Viagem à Índia
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19.11.10
Tudo é breve
Tudo é breve
e o coração domina-se com o tempo
tudo é breve e pesado, tudo
e o coração domina-se com o tempo
tudo é breve e pesado, tudo
até aqueles rubís, lembras-te? as raras jóias
vai tudo para o passado
para ser transformado
em pó, peso, saudade
17.11.10
Os Dias Bons
15.11.10
9.11.10
5.11.10
4.11.10
Encontro
Beth Koch Photographs of the University of California, Irvine.
Special Collections and Archives, The UC Irvine Libraries, Irvine, California.
Quero ouvir o vento que vem da tua pele
Abraça-me. Quero ouvir o vento que vem da tua pele,
e ver o sol nascer do intenso calor dos nossos corpos.
e ver o sol nascer do intenso calor dos nossos corpos.
.
Quando me perfumo assim, em ti, nada existe a não ser
este relâmpago feliz, esta maçã azul que foi colhida na
palidez de todos os caminhos, e que ambos mordemos
para provar o sabor que tem carne incandescente das estrelas.
Quando me perfumo assim, em ti, nada existe a não ser
este relâmpago feliz, esta maçã azul que foi colhida na
palidez de todos os caminhos, e que ambos mordemos
para provar o sabor que tem carne incandescente das estrelas.
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Abraça-me. Veste o meu corpo de ti, para que em ti possa buscar
o sentido dos sentidos, o sentido da vida. Procura-me
com os teus antigos braços de criança
para desamarrar em mim a eternidade, a soma formidável
de todos os momentos livres que a um e a outro pertenceram.
Abraça-me. Veste o meu corpo de ti, para que em ti possa buscar
o sentido dos sentidos, o sentido da vida. Procura-me
com os teus antigos braços de criança
para desamarrar em mim a eternidade, a soma formidável
de todos os momentos livres que a um e a outro pertenceram.
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Abraça-me. Quero morrer de ti em mim, espantado de amor.
Abraça-me. Quero morrer de ti em mim, espantado de amor.
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Dá-me a beber, antes, a água dos teus beijos,
para que possa levá-la comigo e oferecê-la aos astros
pequeninos. Só essa água fará reconhecer
o mais profundo, o mais imenso amor do universo,
e eu quero que dele fiquem a saber
até as estrelas mais antigas e brilhantes.
Abraça-me. Uma vez só. Uma vez mais.
Uma vez que nem sei se tu existes.
Dá-me a beber, antes, a água dos teus beijos,
para que possa levá-la comigo e oferecê-la aos astros
pequeninos. Só essa água fará reconhecer
o mais profundo, o mais imenso amor do universo,
e eu quero que dele fiquem a saber
até as estrelas mais antigas e brilhantes.
Abraça-me. Uma vez só. Uma vez mais.
Uma vez que nem sei se tu existes.
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Joaquim Pessoa
Joaquim Pessoa
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3.11.10
Um Segredo de um Casamento Feliz
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"Desde que a Maria João e eu fizemos dez anos de casados que estou para escrever sobre o casamento. Depois caí na asneira de ler uns livros profissionais sobre o casamento e percebi que eu não percebo nada sobre o casamento.
Confesso que a minha ambição era a mais louca de todas: revelar os segredos de um casamento feliz. Tendo descoberto que são desaconselháveis os conselhos que ia dar, sou forçado a avisar que, quase de certeza, só funcionam no nosso casamento.
Mas vou dá-los à mesma, porque nunca se sabe e porque todos nós somos muito mais parecidos do que gostamos de pensar.
O casamento feliz não é nem um contrato nem uma relação. Relações temos nós com toda a gente. É uma criação. É criado por duas pessoas que se amam.
O nosso casamento é um filho. É um filho inteiramente dependente de nós. Se nós nos separarmos, ele morre. Mas não deixa de ser uma terceira entidade.
Quando esse filho é amado por ambos os casados - que cuidam dele como se cuida de um filho que vai crescendo -, o casamento é feliz. Não basta que os casados se amem um ao outro. Têm também de amar o casamento que criaram.
O nosso casamento é uma cultura secreta de hábitos, métodos e sistemas de comunicação. Todos foram criados do zero, a partir do material do eu e do tu originais.
Foram concordados, são desenvolvidos, são revistos, são alterados, esquecidos e discutidos. Mas um casamento feliz com dez anos, tal como um filho de dez anos, tem uma personalidade mais rica e mais bem sustentada, expressa e divertida do que um bebé com um ano de idade.
Eu só vivo desta maneira - que é o nosso casamento - vivendo com a Maria João, da maneira como estamos um com o outro, casados. Nada é exportável. Não há bocados do nosso casamento que eu possa levar comigo, caso ele acabe.
O casamento é um filho carente que dá mais prazer do que trabalho. Dá-se de comer ao bebé mas, felizmente, o organismo do bebé é que faz o trabalho dificílimo, embora automático, de converter essa comida em saúde e crescimento.
Também o casamento precisa de ser alimentado mas faz sozinho o aproveitamento do que lhe damos. Às vezes adoece e tem de ser tratado com cuidados especiais. Às vezes os casamentos têm de ir às urgências. Mas quanto mais crescem, menos emergências há e melhor sabemos lidar com elas.
Se calhar, os casais apaixonados que têm filhos também ganhariam em pensar no primeiro filho que têm como sendo o segundo. O filho mais velho é o casamento deles. É irmão mais velho do que nasce e ajuda a tratar dele. O bebé idealmente é amado e cuidado pela mãe, pelo pai e pelo casamento feliz dos pais.
Se o primeiro filho que nasce é considerado o primeiro, pode apagar o casamento ou substitui-lo. Os pais jovens - os homens e as mulheres - têm de tomar conta de ambos os filhos. Se a mãe está a tratar do filho em carne e osso, o pai, em vez de queixar-se da falta de atenção, deve tratar do mais velho: do casamento deles, mantendo-o romântico e atencioso.
Ao contrário dos outros filhos, o primeiro nunca sai de casa, está sempre lá. Vale a pena tratar dele. Em contrapartida, ao contrário dos outros filhos, desaparece para sempre com a maior das facilidades e as mais pequenas desatenções. O casamento feliz faz parte da família e faz bem a todos os que também fazem parte dela.
Os livros que li dão a ideia de que os casamentos felizes dão muito trabalho. Mas se dão muito trabalho como é que podem ser felizes? Os livros que li vêem o casamento como uma relação entre duas pessoas em que ambas transigem e transaccionam para continuarem juntas sem serem infelizes. Que grande chatice!
Quando vemos o trabalho que os filhos pequenos dão aos pais, parece-nos muito e mal pago, porque não estamos a receber nada em troca. Só vemos a despesa: o miúdo aos berros e a mãe aflita, a desfazer-se em mimos.
É a mesma coisa com os casamentos felizes. Os pais felizes reconhecem o trabalho que os filhos dão mas, regra geral, acham que vale a pena. Isto é, que ficaram a ganhar, por muito que tenham perdido. O que recebem do filho compensa o que lhe deram. E mais: também pensam que fizeram bem ao filho. Sacrificam-se mas sentem-se recompensados.
Num casamento feliz, cada um pensa que tem mais a perder do que o outro, caso o casamento desapareça. Sente que, se isso acontecer, fica sem nada. É do amor. Só perdeu o casamento deles, que eles criaram, mas sente que perdeu tudo: ela, o casamento deles e ele próprio, por já não se reconhecer sozinho, por já não saber quem é - ou querer estar com essa pessoa que ele é.
Se o casamento for pensado e vivido como uma troca vantajosa - tu dás-me isto e eu dou-te aquilo e ambos ficamos melhores do que se estivéssemos sozinhos -, até pode ser feliz, mas não é um casamento de amor.
Quando se ama, não se consegue pensar assim. E agora vem a parte em que se percebe que estes conselhos de nada valem - porque quando se ama e se é amado, é fácil ser-se feliz. É uma sorte estar-se casado com a pessoa que se ama, mesmo que ela não nos ame.
Ouvir um casado feliz a falar dos segredos de um casamento feliz é como ouvir um bilionário a explicar como é que se deve tomar conta de uma frota de aviões particulares - quantos e quais se devem comprar e quais as garrafas que se deve ter no bar, para agradar aos convidados.
Dirijo-me então às únicas pessoas que poderão aproveitar os meus conselhos: homens apaixonados pelas mulheres com quem estão casados. E às mulheres apaixonadas pelos homens com quem estão casadas? Não tenho nada a dizer. Até porque a minha mulher continua a ser um mistério para mim. É um mistério que adoro, mas constitui uma ignorância especulativa quase total.
Assim chego ao primeiro conselho: os homens são homens e as mulheres são mulheres. A mulher pode ser muito amiga, mas não é um gajo. O marido pode ser muito amigo, mas não é uma amiga.
Nos livros profissionais, dizem que a única grande diferença entre homens e mulheres é a maneira como "lidam com o conflito": os homens evitam mais do que as mulheres. Fogem. Recolhem-se, preferem ficar calados.
Por acaso é verdade. Os livros podem ser da treta mas os homens são mais fugidios.
Em vez de lutar contra isso, o marido deve ceder a essa cobardia e recolher-se sempre que a discussão der para o torto. Não pode ser é de repente. Tem de discutir (dizê-las e ouvi-las) um bocadinho antes de fugir.
Não pode é sair de casa ou ir ter com outra pessoa. Deve ficar sozinho, calado, a fumegar e a sofrer. Ele prende-se ali para não dizer coisas más. As más coisas ditas não se podem desdizer. Ficam ditas. São inesquecíveis. Ou, pior ainda, de se repetirem tanto, banalizam-se. Perdem força e, com essa força, perde-se muito mais.
As zangas passam porque são substituídas pela saudade. No momento da zanga, a solidão protege-nos de nós mesmos e das nossas mulheres. Mas pouco - ou muito - depois, a saudade e a solidão tornam-se insuportáveis e zangamo-nos com a própria zanga. Dantes estávamos apenas magoados. Agora continuamos magoados mas também estamos um bocadinho arrependidos e esperamos que ela também esteja um bocadinho.
Nunca podemos esconder os nossos sentimentos mas podemos esconder-nos até poder mostrá-los com gentileza e mágoa que queira mimo e não proclamação.
Consiste este segredo em esperar que o nosso amor por ela nos puxe e nos conduza. A tempestade passa, fica o orgulho mas, mesmo com o orgulho, lá aparece a saudade e a vontade de estar com ela e, sobretudo, empurrador, o tamanho do amor que lhe temos comparado com as dimensões tacanhas daquela raivinha ou mágoa. Ou comparando o que ganhamos em permanecer ali sozinhos com o que perdemos por não estar com ela.
Mas não se pode condescender ou disfarçar. Para haver respeito, temos de nos fazer respeitar. Tem de ficar tudo dito, exprimido com o devido amuo de parte a parte, até se tornar na conversa abençoada acerca de quem é que gosta menos do outro.
Há conflitos irresolúveis que chegam para ginasticar qualquer casal apaixonado sem ter de inventar outros. Assim como o primeiro dever do médico é não fazer mal ao doente, o primeiro cuidado de um casamento feliz é não inventar e acrescentar conflitos desnecessários.
No dia-a-dia, é preciso haver arenas designadas onde possamos marrar uns com os outros à vontade. No nosso caso, é a cozinha. Discutimos cada garfo, cada pitada de sal, cada lugar no frigorífico com desabrida selvajaria.
Carregamos a cozinha de significados substituídos - violentos mas saudáveis e, com um bocadinho de boa vontade, irreconhecíveis. Não sabemos o que representam as cores dos pratos nas discussões que desencadeiam. Alguma coisa má - competitiva, agressiva - há-de ser. Poderíamos saber, se nos déssemos ao trabalho, mas preferimos assim.
A cozinha está encarregada de representar os nossos conflitos profundos, permanentes e, se calhar, irresolúveis. Não interessa. Ela fornece-nos uma solução superficial e temporária - mas altamente satisfatória e renovável. Passando a porta da cozinha para irmos jantar, é como se o diabo tivesse ficado lá dentro.
Outro coliseu de carnificina autorizada, que mesmo os casais que não podem um com o outro têm prazer em frequentar, é o automóvel. Aí representamos, através da comodidade dos mapas e das estradas mesmo ali aos nossos pés, as nossas brigas primais acerca das nossas autonomias, direcções e autoridades para tomar decisões que nos afectam aos dois, blá blá blá.
Vendo bem, os casamentos felizes são muito mais dramáticos, violentos, divertidos e surpreendentes do que os infelizes. Nos casamentos infelizes é que pode haver, mantidas inteligentemente as distâncias, paz e sossego no lar. "
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Miguel Esteves Cardoso in Jornal Público
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