22.12.10
21.12.10
Retrato de Mónica
Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da «Liga Internacional das Mulheres Inúteis», ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.
Tenho conhecido na vida muitas pessoas parecidas com a Mónica. Mas são só a sua caricatura. Esquecem-se sempre ou do ioga ou da pintura abstracta.
Por trás de tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que Mónica trabalha de sol a sol.
De facto, para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mónica teve que renunciar a três coisas: à poesia, ao amor e à santidade.
A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias.
Isto obriga Mónica a observar uma disciplina severa. Como se diz no circo, «qualquer distracção pode causar a morte do artista». Mónica nunca tem uma distracção. Todos os seus vestidos são bem escolhidos e todos os seus amigos são úteis. Como um instrumento de precisão, ela mede o grau de utilidade de todas as situações e de todas as pessoas. E como um cavalo bem ensinado, ela salta sem tocar os obstáculos e limpa todos os percursos. Por isso tudo lhe corre bem, até os desgostos.
Os jantares de Mónica também correm sempre muito bem. Cada lugar é um emprego de capital. A comida é óptima e na conversa toda a gente está sempre de acordo, porque Mónica nunca convida pessoas que possam ter opiniões inoportunas. Ela põe a sua inteligência ao serviço da estupidez. Ou, mais exactamente: a sua inteligência é feita da estupidez dos outros. Esta é a forma de inteligência que garante o domínio. Por isso o reino de Mónica é sólido e grande.
Ela é íntima de mandarins e de banqueiros e é também íntima de manicuras, caixeiros e cabeleireiros. Quando ela chega a um cabeleireiro ou a uma loja, fala sempre com a voz num tom mais elevado para que todos compreendam que ela chegou. E precipitam-se manicuras e caixeiros. A chegada de Mónica é, em toda a parte, sempre um sucesso. Quando ela está na praia, o próprio Sol se enerva.
O marido de Mónica é um pobre diabo que Mónica transformou num homem importantíssimo. Deste marido maçador Mónica tem tirado o máximo rendimento. Ela ajuda-o, aconselha-o, governa-o. Quando ele é nomeado administrador de mais alguma coisa, é Mónica que é nomeada. Eles não são o homem e a mulher. Não são o casamento. São, antes, dois sócios trabalhando para o triunfo da mesma firma. O contrato que os une é indissolúvel, pois o divórcio arruína as situações mundanas. O mundo dos negócios é bem-pensante.
É por isso que Mónica, tendo renunciado à santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz casacos de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome. Às vezes, quando os casacos estão prontos, as crianças já morreram de fome. Mas a vida continua. E o sucesso de Mónica também. Ela todos os anos parece mais nova. A miséria, a humilhação, a ruína não roçam sequer a fímbria dos seus vestidos. Entre ela e os humilhados e ofendidos não há nada de comum.
E por isso Mónica está nas melhores relações com o Príncipe deste Mundo. Ela é sua partidária fiel, cantora das suas virtudes, admiradora de seus silêncios e de seus discursos. Admiradora da sua obra, que está ao serviço dela, admiradora do seu espírito, que ela serve.
Pode-se dizer que em cada edifício construído neste tempo houve sempre uma pedra trazida por Mónica.
Há vários meses que não vejo Mónica. Ultimamente contaram-me que em certa festa ela estivera muito tempo conversando com o Príncipe deste Mundo. Falavam os dois com grande intimidade. Nisto não há evidentemente, nenhum mal. Toda a gente sabe que Mónica é seriíssima toda a gente sabe que o Príncipe deste Mundo é um homem austero e casto.
Não é o desejo do amor que os une. O que os une é justamente uma vontade sem amor.
E é natural que ele mostre publicamente a sua gratidão por Mónica. Todos sabemos que ela é o seu maior apoio; mais firme fundamento do seu poder.
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Tenho conhecido na vida muitas pessoas parecidas com a Mónica. Mas são só a sua caricatura. Esquecem-se sempre ou do ioga ou da pintura abstracta.
Por trás de tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que Mónica trabalha de sol a sol.
De facto, para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mónica teve que renunciar a três coisas: à poesia, ao amor e à santidade.
A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias.
Isto obriga Mónica a observar uma disciplina severa. Como se diz no circo, «qualquer distracção pode causar a morte do artista». Mónica nunca tem uma distracção. Todos os seus vestidos são bem escolhidos e todos os seus amigos são úteis. Como um instrumento de precisão, ela mede o grau de utilidade de todas as situações e de todas as pessoas. E como um cavalo bem ensinado, ela salta sem tocar os obstáculos e limpa todos os percursos. Por isso tudo lhe corre bem, até os desgostos.
Os jantares de Mónica também correm sempre muito bem. Cada lugar é um emprego de capital. A comida é óptima e na conversa toda a gente está sempre de acordo, porque Mónica nunca convida pessoas que possam ter opiniões inoportunas. Ela põe a sua inteligência ao serviço da estupidez. Ou, mais exactamente: a sua inteligência é feita da estupidez dos outros. Esta é a forma de inteligência que garante o domínio. Por isso o reino de Mónica é sólido e grande.
Ela é íntima de mandarins e de banqueiros e é também íntima de manicuras, caixeiros e cabeleireiros. Quando ela chega a um cabeleireiro ou a uma loja, fala sempre com a voz num tom mais elevado para que todos compreendam que ela chegou. E precipitam-se manicuras e caixeiros. A chegada de Mónica é, em toda a parte, sempre um sucesso. Quando ela está na praia, o próprio Sol se enerva.
O marido de Mónica é um pobre diabo que Mónica transformou num homem importantíssimo. Deste marido maçador Mónica tem tirado o máximo rendimento. Ela ajuda-o, aconselha-o, governa-o. Quando ele é nomeado administrador de mais alguma coisa, é Mónica que é nomeada. Eles não são o homem e a mulher. Não são o casamento. São, antes, dois sócios trabalhando para o triunfo da mesma firma. O contrato que os une é indissolúvel, pois o divórcio arruína as situações mundanas. O mundo dos negócios é bem-pensante.
É por isso que Mónica, tendo renunciado à santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz casacos de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome. Às vezes, quando os casacos estão prontos, as crianças já morreram de fome. Mas a vida continua. E o sucesso de Mónica também. Ela todos os anos parece mais nova. A miséria, a humilhação, a ruína não roçam sequer a fímbria dos seus vestidos. Entre ela e os humilhados e ofendidos não há nada de comum.
E por isso Mónica está nas melhores relações com o Príncipe deste Mundo. Ela é sua partidária fiel, cantora das suas virtudes, admiradora de seus silêncios e de seus discursos. Admiradora da sua obra, que está ao serviço dela, admiradora do seu espírito, que ela serve.
Pode-se dizer que em cada edifício construído neste tempo houve sempre uma pedra trazida por Mónica.
Há vários meses que não vejo Mónica. Ultimamente contaram-me que em certa festa ela estivera muito tempo conversando com o Príncipe deste Mundo. Falavam os dois com grande intimidade. Nisto não há evidentemente, nenhum mal. Toda a gente sabe que Mónica é seriíssima toda a gente sabe que o Príncipe deste Mundo é um homem austero e casto.
Não é o desejo do amor que os une. O que os une é justamente uma vontade sem amor.
E é natural que ele mostre publicamente a sua gratidão por Mónica. Todos sabemos que ela é o seu maior apoio; mais firme fundamento do seu poder.
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Sophia de Mello Breyner Andresen in Contos Exemplares
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20.12.10
19.12.10
Sem acção, de nada vale a inteligência
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Os conhecimentos ouvem-se, mas para agir a capacidade de audição é praticamente desprezável. Porque agir é estar próximo das coisas e ouvir é estar afastado das coisas. Alguém que apenas ouve será considerado um intruso no mundo, a Natureza não se sentirá ameaçada. Quem ouve poderá acumular conhecimentos, mas essa acumulação não lutará com a Natureza. Esta resiste bem à inteligência, ao raciocínio e à memória do Homem: todas estas qualidades intelectuais são assuntos que dizem respeito exclusivamente ao mundo da cidade, e o que ameaça a Natureza são as acções: os momentos em que os humanos abandonam a audição, e mesmo a linguagem do discurso, e passam a querer falar com o tacto: o único que pode alterar as coisas.
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Se os homens, mantendo a sua inteligência incorrupta, fossem seres imóveis, incapazes de qualquer movimento, seriam ainda hoje menos poderosos do que um único metro quadrado de terra espontâneo. Poderiam possuir um grau de aperfeiçoamento no pensamento abstracto, matemático e lógico, mas não deixariam de ser uma espécie secundária ao lado das outras: as possuidoras de movimento. Qualquer cão mesquinho mijaria nas pernas de um homem inteligente, mas imóvel.
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Gonçalo M. Tavares in Um Homem: Klaus Klump
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Os conhecimentos ouvem-se, mas para agir a capacidade de audição é praticamente desprezável. Porque agir é estar próximo das coisas e ouvir é estar afastado das coisas. Alguém que apenas ouve será considerado um intruso no mundo, a Natureza não se sentirá ameaçada. Quem ouve poderá acumular conhecimentos, mas essa acumulação não lutará com a Natureza. Esta resiste bem à inteligência, ao raciocínio e à memória do Homem: todas estas qualidades intelectuais são assuntos que dizem respeito exclusivamente ao mundo da cidade, e o que ameaça a Natureza são as acções: os momentos em que os humanos abandonam a audição, e mesmo a linguagem do discurso, e passam a querer falar com o tacto: o único que pode alterar as coisas.
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Se os homens, mantendo a sua inteligência incorrupta, fossem seres imóveis, incapazes de qualquer movimento, seriam ainda hoje menos poderosos do que um único metro quadrado de terra espontâneo. Poderiam possuir um grau de aperfeiçoamento no pensamento abstracto, matemático e lógico, mas não deixariam de ser uma espécie secundária ao lado das outras: as possuidoras de movimento. Qualquer cão mesquinho mijaria nas pernas de um homem inteligente, mas imóvel.
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Gonçalo M. Tavares in Um Homem: Klaus Klump
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16.12.10
Paraíso
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"Fomos criados para vivermos no Paraíso, o Paraíso destinava-se a servir-nos.
O nosso destino foi alterado; que isto também tenha acontecido com
o destino do Paraíso, é algo que não se diz."
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Franz Kafka in Aforísmos
11.12.10
Se tanto me dói que as coisas passem
Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na busca de um bem definitivo
Em que as coisas de Amor se eternizassem
Sophia de Mello Breyner Andresen
9.12.10
A Canção do Delirante Aengus
Eu fui para uma floresta de nogueiras,
Porque minha mente estava inquieta,
Eu colhi e limpei algumas nozes,
E apanhei uma cereja, curvando o seu fino ramo;
E, quando as claras mariposas estavam voando,
Parecendo pequenas estrelas, flutuando erráticas,
Eu lancei framboesas, como gotas, em um riacho
E capturei uma pequena truta prateada.
Quando eu a coloquei no chão
E fui soprar para reativar as chamas,
Alguma coisa moveu-se e eu pude ouvir,
E, alguém me chamou pelo meu nome:
Apareceu-me uma jovem, brilhando suavemente
Com flores de maçãs nos cabelos
Ela me chamou pelo meu nome e correu
E desapareceu no ar, como um brilho mais forte.
Talvez eu esteja cansado de vagar em meus caminhos
Por tantas terras cheias de cavernas e colinas,
Eu vou encontrar o lugar para onde ela se foi,
E beijar seus lábios e segurar suas mãos;
Caminharemos entre coloridas folhagens,
E ficaremos juntos até o tempo do fim do tempo, colhendo
As prateadas maçãs da lua,
As douradas maçãs do sol.
Porque minha mente estava inquieta,
Eu colhi e limpei algumas nozes,
E apanhei uma cereja, curvando o seu fino ramo;
E, quando as claras mariposas estavam voando,
Parecendo pequenas estrelas, flutuando erráticas,
Eu lancei framboesas, como gotas, em um riacho
E capturei uma pequena truta prateada.
Quando eu a coloquei no chão
E fui soprar para reativar as chamas,
Alguma coisa moveu-se e eu pude ouvir,
E, alguém me chamou pelo meu nome:
Apareceu-me uma jovem, brilhando suavemente
Com flores de maçãs nos cabelos
Ela me chamou pelo meu nome e correu
E desapareceu no ar, como um brilho mais forte.
Talvez eu esteja cansado de vagar em meus caminhos
Por tantas terras cheias de cavernas e colinas,
Eu vou encontrar o lugar para onde ela se foi,
E beijar seus lábios e segurar suas mãos;
Caminharemos entre coloridas folhagens,
E ficaremos juntos até o tempo do fim do tempo, colhendo
As prateadas maçãs da lua,
As douradas maçãs do sol.
W. B. Yeats, 1899
8.12.10
Vivemos em suspenso
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Vivemos em suspenso. Para além instabilidade vinda da especulação, das oscilações dos mercados, do descrédito nas instituições, há um movimento que nos sussura uma ideia de "fim dos tempos". Uma pedra cai sobre a água e afunda-se ...ouve-se o propagar do som. Estamos no auge do transitório e o medo desdobra-se em mil faces. Habituámo-nos a pensar que teríamos sempre uma mão que nos seguraria quando o corpo entrásse em queda. Mas e se a mão já não estiver lá? E se no novo tempo aquilo que conquistámos já não nos servir para nada? As pessoas estão agora a pensar no que realmente têm e que não pode ser "levado". São obrigadas a ver-se a confrontarem-se consigo mesmas. Talvez por isso se verifique uma maior apetência para a participação solidária. Mas são tempos perigosos. Perante a insatisfação geral facilmente se acede um rastilho e são propagadas as mais obscuras ideias. É tempo de reler a história e tentar ler os sinais vindos de todos os lados. É tempo de subir à montanha para poder ver mais longe. É tempo de resistir.
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2.12.10
1.12.10
Antes de um lugar há o seu nome
Antes de um lugar há o seu nome. E ainda
a viagem até ele, que é um outro lugar
mais descontínuo e inominável.
Lembro-me
do quadriculado verde das colinas,
do sol entretido pelos telhados ao longe,
dos rebanhos empurrados nos carreiros,
de um cão pequeno que se atreveu à estrada.
Íamos ou vínhamos?
- Maria do Rosário Pedreira -
Não é Preciso
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Não é preciso que a realidade exista
para acreditarmos nela. Na verdade,
se não existir tudo é mais luminoso.
Mundo, evidência submissa e soberana.
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Pedro Mexia in Duplo Império,1999
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