28.2.13
Perante quem é que somos homens?
"Perante quem é que somos homens? É uma pergunta simples. Mas ela revoluciona toda a história da humanidade. Experimenta fazê-la. Experimenta pensá-la."
Vergílio Ferreira
O nosso tempo
"O mais grave no nosso tempo não é não termos respostas para o que perguntamos - é não termos já mesmo perguntas."
Vergílio Ferreira
Viver e escrever
"Vive a vida o mais intensamente que puderes. Escreve essa intensidade o mais calmamente que puderes. E ela será ainda mais intensa no absoluto do imaginário de quem te lê."
Vergílio Ferreira
Vergílio Ferreira
27.2.13
Uma espécie de perda
Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma
cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados,
gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissemos. Fizemos.
E estendemos sempre a mão.
Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por
Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma
cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,
(- o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um aponta-
mento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.
De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor
mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.
Não te perdi a ti,
perdi o mundo.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma
cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados,
gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissemos. Fizemos.
E estendemos sempre a mão.
Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por
Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma
cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,
(- o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um aponta-
mento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.
De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor
mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.
Não te perdi a ti,
perdi o mundo.
Ingeborg Bachmann in O tempo aprazado
24.2.13
Os Excluídos
Quem comete um erro é excluído; é fechado dentro de uma caixa. Quem está fora vê apenas a caixa. Mas quem está fechado, excluído, consegue ver cá para fora. Vê tudo, vê-nos a todos.
Em cada compartimento há dezenas de caixas. Milhares de caixas por todo o lado. A maior parte delas vazia. Outras têm lá dentro pessoas excluídas. Ninguém sabe quais as caixas que têm pessoas.
As caixas são tantas que ninguém lhes dá importância. Pode estar lá uma pessoa, até a que amas, mas nem olhas. Já não produzem efeito. Passas por elas centenas de vezes.
Gonçalo M. Tavares in Jerusálem
As Vozes do Silêncio
As estátuas de Olímpia, que tanto contribuem para nos ligar à Grécia, alimentam contudo também, no estado em que chegaram até nós - esbranquiçadas, quebradas, isoladas da obra integral -, um mito fraudulento da Grécia, não sabem resisitir ao tempo como um manuscrito, mesmo incompleto, rasgado, quase ilegível. O texto de Heráclito lança-nos clarões como nenhuma estátua em pedaços pode fazer, porque o significado é nele deposto de maneira diferente, é concentrado de forma diferente do que está concentrado nelas, e porque nada iguala a ductilidade da palavra. Enfim, a linguagem diz, e as vozes da pintura são as vozes do silêncio.
21.2.13
Sobre o Mundo
O telescópio não
alcança sequer a tua alma;
Imprecisão exacta
de um instrumento instintivo.
Mas repara: não há
instrumentos instintivos ou máquinas
Espontâneas.
Dois terços do amor
estão na mulher, qualquer
que seja o casal.
As evidências abrem falência
Em todas as áreas;
com o machado homens robustos inventam
Ciências viris.
Indispensáveis, de facto:
ciências meigas já
existem em número
Excessivo.
Monumentos que ocupam
Quilômetros
quadrados são explicados por uma equação de
Dois centímetros.
Repara: a engenharia é a invenção que engordou
As equações
matemáticas. Atirou-as para o Mundo.
Vê as águas, a
sabedoria discreta: ninguém
Constrói uma torre
de observação no centro
Do mar. As águas
não se bebem
Por inteiro, e nem
toda a água é doméstica. o mar não tem
diminutivos. Uma
onda não o é.
Nem o
peixe.
Ciências que
estudem seriamente o riso
Não existem; os
cientistas
Colocam fórmulas em
tabelas: têm gráficos complexos
que explicam a
simplicidade
Do Mundo.
Felizmente, fomos salvos
Pelo
coração.
Certos órgãos
ficaram reféns dos profetas
Antigos, e as
noites passam-se melhor assim.
Indecisões
desconcertantes permitem reinventar a
Monotonia: Trago-te
uma monotonia surpreendente, alguém diz.
Animais mitológicos
bebem água no nada,
E mesmo assim
crescem; tem células resistentes.
Outros animais mais
longos e espessos, mamíferos
De grande porte por
exemplo, evaporam a 36°, reaparecendo
Não carnívora. O
mundo muda,
Não pense que não.
Nem os mamíferos são eternos.
No aeródromo, por
exemplo, o poema atravanca o caminho
De
descolagem
do avião de um
País pouco
habituado a máquinas que subam mais
Alto que um banco
de cozinha. O mundo
Não é injusto, mas
também não é teu mordomo;
Avança e é
só.
Poemas
extraídos da revista POESIA SEMPRE, Num. 26, Ano 14, 2007.
Edição da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
16.2.13
Ecce Homo
Sim, sei de onde venho!
Insatisfeito com a labareda
Ardo para me consumir.
Aquilo em que toco torna-se luz,
Carvão aquilo que abandono:
Sou certamente labareda.
Friedrich Nietzsche in A Gaia Ciência
14.2.13
Assim o Amor
Assim o amor
Espantado meu olhar com teus cabelos
Espantado meu olhar com teus cavalos
E grandes praias fluidas avenidas
Tardes que oscilam demoradas
E um confuso rumor de obscuras vidas
E o tempo sentado no limiar dos campos
Com seu fuso sua faca e seus novelos
Em vão busquei eterna luz precisa
Sophia de Mello Breyner Andresen
Espantado meu olhar com teus cabelos
Espantado meu olhar com teus cavalos
E grandes praias fluidas avenidas
Tardes que oscilam demoradas
E um confuso rumor de obscuras vidas
E o tempo sentado no limiar dos campos
Com seu fuso sua faca e seus novelos
Em vão busquei eterna luz precisa
Sophia de Mello Breyner Andresen
8.2.13
7.2.13
Estou Lúcido como se Nunca Tivesse Pensado
A noite desce, o calor soçobra um pouco,
Estou lúcido como se nunca tivesse pensado
E tivesse raiz, ligação direta com a terra.
Não esta espécie de ligação de sentido secundário observado à noite.
À noite quando me separo das cousas,
E m'aproximo das estrelas ou constelações distantes —
Erro: porque o distante não é o próximo,
E aproximá-lo é enganar-me.
Alberto Caeiro in Poemas Inconjuntos
Heterónimo de Fernando Pessoa
Estou lúcido como se nunca tivesse pensado
E tivesse raiz, ligação direta com a terra.
Não esta espécie de ligação de sentido secundário observado à noite.
À noite quando me separo das cousas,
E m'aproximo das estrelas ou constelações distantes —
Erro: porque o distante não é o próximo,
E aproximá-lo é enganar-me.
Alberto Caeiro in Poemas Inconjuntos
Heterónimo de Fernando Pessoa
2.2.13
simulacro
"Movem-se os amantes em direcção aos simulacros das coisas amadas, para falar com as criaturas imitadas."
Leonardo da Vinci
Escrever
Escrever é isto: comover para desconvocar a angústia e aligeirar o medo, que é sempre experimentado nos povos como uma infusão de laboratório, cada vez mais sofisticada. Eu penso que o escritor com maior sucesso (não de livraria, mas de indignação social profunda) é aquele que protege os homens do medo: por audácia, delírio, fantasia, piedade ou desfiguração. Mas porque a poética precisão de dum acto humano não corresponde totalmente à sua evidência. Ama-se a palavra, usa-se a escrita, despertam-se as coisas do silêncio em que foram criadas. Depois de tudo, escrever é um pouco corrigir a fortuna, que é cega, com um júbilo da Natureza, que é precavida.
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