30.9.13
29.9.13
Bondade
Quando a bondade se mostra abertamente já não é bondade, embora possa ainda ser útil como caridade organizada ou como acto de solidariedade. Daí: «Não dês as tuas esmolas diante dos homens, para seres visto por eles». A bondade só pode existir quando não é percebida, nem mesmo por aquele que a faz; quem quer que se veja a si mesmo no acto de fazer uma boa obra deixa de ser bom; será, no máximo, um membro útil da sociedade ou zeloso membro de uma igreja. Daí: «Que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita.»
(...) O amor à sabedoria e o amor à bondade, que se resolvem nas actividades de filosofar e de praticar boas acções, têm em comum o facto de que cessam imediatamente - cancelam-se, por assim dizer - sempre que se presume que o homem pode ser sábio ou ser bom. Sempre houve tentativas de dar vida ao que jamais pode sobreviver ao momento fugaz do próprio acto, e todas elas levaram ao absurdo.
Hannah Arendt in A Condição Humana
Hannah Arendt in A Condição Humana
26.9.13
a faca não corta o fogo
a faca não corta o fogo,
não me corta o sangue escrito,
não corta a água,
e quem não queria uma língua dentro da própria língua?
eu sim queria,
jogando linho com dedos, conjugando
onde os verbos não conjugam,
no mundo há poucos fenómenos do fogo,
água há pouca,
mas a língua, fia-se a gente dela por não ser como se queria,
mais brotada, inerente, incalculável,
e se a mão fia a estriga e a retoma do nada,
e a abre e fecha,
é que sim que eu amava como bárbara maravilha,
porque no mundo há pouco fogo a cortar
e a água cortada é pouca.
que língua,
que húmida, muda, miúda, relativa, absoluta,
e que pouca, incrível, muita
e la poésie, cést quand le quotidien devient extraordinaire, e que
_______________________________________música
que despropósito, que língua língua,
disse Maurice Lefèvre, e como rebenta na boca!
queria-a toda
Herberto Helder
in A Faca Não Corta o Fogo, 2008
não me corta o sangue escrito,
não corta a água,
e quem não queria uma língua dentro da própria língua?
eu sim queria,
jogando linho com dedos, conjugando
onde os verbos não conjugam,
no mundo há poucos fenómenos do fogo,
água há pouca,
mas a língua, fia-se a gente dela por não ser como se queria,
mais brotada, inerente, incalculável,
e se a mão fia a estriga e a retoma do nada,
e a abre e fecha,
é que sim que eu amava como bárbara maravilha,
porque no mundo há pouco fogo a cortar
e a água cortada é pouca.
que língua,
que húmida, muda, miúda, relativa, absoluta,
e que pouca, incrível, muita
e la poésie, cést quand le quotidien devient extraordinaire, e que
_______________________________________música
que despropósito, que língua língua,
disse Maurice Lefèvre, e como rebenta na boca!
queria-a toda
Herberto Helder
in A Faca Não Corta o Fogo, 2008
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24.9.13
Quem ama a liberdade conhece que é idêntica
Quem ama a liberdade
conhece que é idêntica
a verdade e a não-verdade o ser e o vazio
e por isso na sua celebração a metáfora expande-se
na liberdade de ser a ténue sabedoria
desse momento e só desse momento em que o arco cresce
Há então que procurar a chuva dessa nuvem
ou desdizê-Ia não para o nosso olhar
mas para um outro rosto de areia que cresce no vazio
e poderá ser de pedra ou de ouro ou só de uma penugem
O poema é o encontro destas duas faces
de nenhuma substância quando no vazio do céu
os anjos se diluem com as mãos despojadas
António Ramos Rosa, in As espirais do Silêncio
a verdade e a não-verdade o ser e o vazio
e por isso na sua celebração a metáfora expande-se
na liberdade de ser a ténue sabedoria
desse momento e só desse momento em que o arco cresce
Há então que procurar a chuva dessa nuvem
ou desdizê-Ia não para o nosso olhar
mas para um outro rosto de areia que cresce no vazio
e poderá ser de pedra ou de ouro ou só de uma penugem
O poema é o encontro destas duas faces
de nenhuma substância quando no vazio do céu
os anjos se diluem com as mãos despojadas
António Ramos Rosa, in As espirais do Silêncio
22.9.13
Da Realidade
Que renda fez a tarde no jardim,
Que há cedros que parecem de enxoval?
Como é difícil ver o natural.
Quando a hora não quer!
Ah! não digas que não ao que os teus olhos
Colham nos dias de irrealidade.
Tudo então é verdade,
Toda a rama parece
Um tecido que tece
A eternidade.
Miguel Torga in 'Nihil Sibi'
21.9.13
20.9.13
Solidão
A solidão é como uma chuva.
Ergue-se do mar ao encontro das noites;
de planícies distantes e remotas
sobe ao céu, que sempre a guarda.
E do céu tomba sobre a cidade.
Ergue-se do mar ao encontro das noites;
de planícies distantes e remotas
sobe ao céu, que sempre a guarda.
E do céu tomba sobre a cidade.
Cai como chuva nas horas ambíguas,
quando todas as vielas se voltam para a manhã
e quando os corpos, que nada encontraram,
desiludidos e tristes se separam;
e quando aqueles que se odeiam
têm de dormir juntos na mesma cama:
quando todas as vielas se voltam para a manhã
e quando os corpos, que nada encontraram,
desiludidos e tristes se separam;
e quando aqueles que se odeiam
têm de dormir juntos na mesma cama:
então, a solidão vai com os rios…
Rainer Maria Rilke
As flores de hoje
"A realidade apenas se forma na memória; as flores que hoje me mostram pela primeira vez não me parecem verdadeiras flores."
Marcel Proust
Marcel Proust
19.9.13
uma espécie de ar
"Caracol é uma solidão que anda na parede."
"Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos."
"A gente é rascunho de pássaro."
"Uso a palavra para compor meus silêncios."
"Tudo que não invento é falso."
frases de Manoel de Barros
No descomeço
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio.
Manoel de Barros
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio.
Manoel de Barros
16.9.13
Experiência
"A experiência localiza-se nos dedos e na cabeça.
O coração não tem experiência."
Henry David Thoreau
O coração não tem experiência."
Henry David Thoreau
Simplificar, simplificar
"Simplicidade, simplicidade, simplicidade! Digo: ocupai-vos de dois ou três afazeres, e não de cem ou mil; contai meia dúzia em vez de um milhão e tomai nota das receitas e despesas na ponta do polegar. A meio do agitado mar da vida civilizada, tantas são as nuvens, as tempestades, as areias movediças, tantos são os mil e um imprevistos a ser levados em conta, que para não se afundar, para não ir a pique antes de chegar ao porto, um homem tem de ser um grande calculista para lograr êxito.
Henry David Thoreau in 'Walden'
Simplificar, simplificar, simplificar. Em vez de três refeições por dia, se preciso for, comer apenas uma; em vez de cem pratos, cinco; e reduzir proporcionalmente as outras coisas. A nossa vida é como uma Confederação Germânica, composta de insignificantes Estados e com as fronteiras sempre a flutuar, de modo que nem uma alemão sabe, em dado momento, dizer quais são. "
Henry David Thoreau in 'Walden'
15.9.13
9.9.13
CANÇÃO
Dizem que esta cidade tem dez milhões de almas
Umas vivem em palácios, outras em mansardas;
contudo não há lugar para nós, minha querida, não há lugar para nós.
Uma vez tivemos uma pátria e julgávamos que era bela.
Olha para o mapa e lá a encontrarás;
mas não poderemos regressar tão cedo, minha querida, não podere-
mos regressar tão cedo.
O cônsul deu um murro na mesa e disse:
se não têm passaportes estão oficialmente mortos;
mas nós ainda estamos vivos, minha querida, ainda estamos vivos.
Lá em baixo no adro um velho teixo
todas as primaveras floresce de novo:
e os velhos passaportes não florescem, minha querida, os velhos
passaportes não florescem.
Fui a um comissariado e ofereceram-me uma cadeira.
disseram polidamente para voltar no ano seguinte:
mas onde iremos agora, minha querida, onde iremos agora?
Fui a um comício público; o orador levantou-se e disse:
se os deixarmos cá dentro, roubar-nos-ão o pão de cada dia;
estava a falar de mim e de ti, minha querida, a falar de mim e de ti.
Ouves um ruído como um trovão roncando no céu?
É Hitler sobre a Europa dizendo: «Eles têm de morrer!»
Nós estávamos no Seu pensamento, minha querida, estávamos no
Seu pensamento.
Vi um cão de luxo de jaqueta apertada com um alfinete
vi uma porta aberta e um gato entrando;
mas não eram judeus alemães, minha querida, não ale-
mães.
Desci ao porto e parei no cais
vi os peixes a nadar. Como são livres!
a dez pés de distância, minha querida, só a dez pés distância
Passeei pelo bosque; há pássaros nas árvores,
não têm políticos e cantam livremente.
Não são da raça humana, minha querida, não são da raça humana
Sonhei que vira um edifício com mil andares
mil janelas e mil portas;
nenhuma delas era nossa, minha querida, nenhuma
Corri à estação para apanhar o expresso,
pedi dois bilhetes para a Felicidade;
mas todas as carruagens estavam cheias, minha querida, todas as
carruagens estavam cheias.
Fui parar a uma grande planície, no meio da neve a cair
dez mil soldados marchavam de um lado para o outro
olhando para mim e para ti, minha querida, olhando para mim e
para ti.
W. H. Auden 1907-1973)
in Rosa Do Mundo, 2001 POEMAS PARA O FUTURO
Assírio & Alvim /TRAD.: Jorge Emílio
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4.9.13
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