30.10.14

Bilhete de Identidade

Escreve
sou árabe
o  número do meu bilhete de identidade é o
                  cinquenta mil
tenho oito filhos
e o nono chegará… depois do Verão
Ficarás irritado?

Escreve
sou árabe
trabalho com os meus companheiros de infortúnio
numa pedreira
tenho oito filhos
para eles extraio da rocha
a carcaça do pão
a roupa e os cadernos
E não venho mendigar à tua porta
não me curvo
no átrio da tua casa
Ficarás irritado?

Escreve
sou árabe
Tenho um nome vulgar
sofro num país
que ferve de raiva
As minhas raízes…
fixadas antes do nascimento do tempo
antes da eclosão dos séculos
antes dos ciprestes e das oliveiras
antes da erva
O meu pai…
da família do arado
e não dos senhores de Nujub
O meu avô, um camponês
sem árvore genealógica
Ensinou-me os movimentos do sol
antes da leitura
A minha casa
uma cabana de guarda
feita de canos e ramos
Estás contente com a minha condição?
tenho um nome vulgar

Escreve
sou árabe
cabelos… pretos
olhos… castanhos
sinais particulares
na cabeça um ‘keffyah’ seguro por um cordel
A palma da minha mão, rugosa como a rocha
arranha a mão que aperta
o meu endereço: sou duma aldeia perdida, sem defesa
e todos os seus homens estão no campo e na
                              pedreira…
Ficarás irritado?

Então
escreve
ao alto da primeira página
Eu não odeio os meus semelhantes
e não ataco ninguém
Mas… se um dia me obrigarem a passar fome
comerei a carne do meu espoliador
Fica atento… fica atento
à minha fome
e à minha cólera


 Mahmoud Darwish (1941 – 2008) 

29.10.14

há saudade no vento


Symi (Thrown Drapery), 1979 | David Ligare

28.10.14

A vida verdadeira é como a água

A vida verdadeira é como a água:
Em silêncio se adapta ao nível inferior
Que os homens desprezam.
Não se opõe a nada,
Serve a tudo.
Não exige nada,
Porque sua origem é da fonte imortal.
O homem realizado não tem desejos de dentro,
Nem tem exigências de fora.
Ele é prestativo em se dar
E sincero em falar,
Suave no conduzir,
Poderoso no agir.
Age com serenidade.
Por isto é incontaminável.


Lao - Tsé

27.10.14

The Souls of Millions of Light Years Away

         Yayoi Kusama "Infinity Mirrored Room - The Souls of Millions of Light Years Away" 2013. Photo: Maris Hutchinson

Se perguntarem: das artes do mundo?


Se perguntarem: das artes do mundo?
Das artes do mundo escolho a de ver cometas
despenharem-se
nas grandes massas de água: depois, as brasas pelos recantos,
charcos entre elas.
Quero na escuridão revolvida pelas luzes
ganhar baptismo, ofício.
Queimado nas orlas de fogo das poças.
O meu nome é esse.
E os dias atravessam as noites até aos outros dias, as noites
caem dentro dos dias - e eu estudo
astros desmoronados, mananciais, o segredo.

Herberto Helder

17.10.14

A Invisibilidade de Deus


dizem que em sua boca se realiza a flor 
outros afirmam: 
                   a sua invisibilidade é aparente 
mas nunca toquei deus nesta escama de peixe 
onde podemos compreender todos os oceanos 
nunca tive a visão de sua bondosa mão 

o certo 
é que por vezes morremos magros até ao osso 
sem amparo e sem deus 
apenas um rosto muito belo surge etéreo 
na vasta insónia que nos isolou do mundo 
e sorri 
dizendo que nos amou algumas vezes 
mas não é o rosto de deus 
nem o teu nem aquele outro 
que durante anos permaneceu ausente 
e o tempo revelou não ser o meu 

Al Berto, in 'Sete Poemas do Regresso de Lázaro'

15.10.14

Alexander Gutsche, Monarchie und Alltag (Monarchy and Everyday Life), 2012

O Poder

O único factor material indispensável para a geração do poder é a convivência entre os homens. Estes só retêm poder quando vivem tão próximos uns dos outros que as potencialidades da acção estão sempre presentes; e, portanto, a fundação de cidades que, como as cidades-estado, se converteram em paradigmas para toda a organização política ocidental, foi na verdade a condição prévia material mais importante do poder. 

O que mantém unidas as pessoas depois de ter passado o momento fugaz da acção (aquilo que hoje chamamos «organização») e o que elas, por sua vez, mantêm vivo ao permanecerem unidas é o poder. Todo aquele que, por algum motivo, se isola e não participa dessa convivência renuncia ao poder e torna-se impotente, por maior que seja a sua força e por mais válidas que sejam as suas razões. 

Hannah Arendt in A Condição Humana

12.10.14

A Loucura é uma Destilação Decisiva

Nestes séculos, o escritor tem mantido uma conversa com a loucura. Podemos quase dizer que o escritor do século vinte aspira à loucura. Alguns conseguiram-no, evidentemente, e ocupam lugares especiais na nossa consideração. Para um escritor, a loucura é uma destilação decisiva do eu, uma edição decisiva. É o submergir das vozes enganadoras. 

Don DeLillo in Os Nomes

La butaca

 ANTONI TÀPIES. La butaca, 1987

Ah! Desgraçados!


Um irmão é maltratado e vocês olham para o outro lado?
Grita de dor o ferido e vocês ficam calados?
A violência faz a ronda e escolhe a vítima,
e vocês dizem: "a mim ela está poupando, vamos fingir que não estamos olhando".
Mas que cidade?
Que espécie de gente é essa?
Quando campeia em uma cidade a injustiça,
é necessário que alguem se levante.
Não havendo quem se levante,
é preferível que em um grande incêndio,
toda cidade desapareça,
antes que a noite desça.


Bertolt Brecht (1898–1956)

4.10.14

Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, 
Eu era feliz e ninguém estava morto. 
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, 
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer. 

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, 
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma, 
De ser inteligente para entre a família, 
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim. 
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças. 
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida. 

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo, 
O que fui de coração e parentesco. 
O que fui de serões de meia-província, 
O que fui de amarem-me e eu ser menino, 
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui... 
A que distância!... 
(Nem o acho... ) 
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos! 

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa, 
Pondo grelado nas paredes... 
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas), 
O que eu sou hoje é terem vendido a casa, 
É terem morrido todos, 
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio... 

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ... 
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo! 
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez, 
Por uma viagem metafísica e carnal, 
Com uma dualidade de eu para mim... 
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes! 

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui... 
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos, 
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado, 
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, 
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos... 

Pára, meu coração! 
Não penses! Deixa o pensar na cabeça! 
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus! 
Hoje já não faço anos. 
Duro. 
Somam-se-me dias. 
Serei velho quando o for. 
Mais nada. 
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ... 

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!... 

Álvaro de Campos, in "Poemas" 
Heterónimo de Fernando Pessoa

3.10.14

La Grande Bellezza

Rosa do Mundo

Rosa. Rosa do mundo.
Queimada.
Suja de tanta palavra.

Primeiro orvalho sobre o rosto.
que foi pétala
a pétala lenço de soluços.

Obscena rosa. Repartida
Amada.
Boca ferida, sopro de ninguém.

Quase nada.


Eugénio de Andrade