30.12.15

Tratado geral das grandezas do ínfimo


A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.

Manoel de Barros (1916 - 2014)  

16.12.15

Ouvia-se milhões de pessoas a criar o futuro

Sei que tudo está ligado
a uma gravidade, a um eco
que se propaga para fora do tempo
Tudo está ligado às coisas incompreensíveis
à matéria negra, ao que está lá e não tem nome
nem presença, apenas pressentimento

As imagens vêm de dentro das pessoas
e outras são produzidas
durante dia e noite
O mundo dos homens fabrica-as aos milhões
segundo a segundo
para que tudo permaneça e nada morra
mas tudo desaparece e nada fica

Ela pensava que se amasse muito o mundo
ele devolvia-lhe a sua verdade
Ela dizia que pensar no futuro era criar o futuro
e pensava na harmonia da vida das pessoas
com a das árvores e a de todos os elementos

Segundo a segundo
milhões de pessoas criavam o futuro
ouvia-se um eco do futuro a ser criado
que se propagava pelo espaço

Também se ouvia música e o som do mar
Ela acreditava que todas as pessoas podiam
criar um futuro modelo
e viverem a realidade numa ilusão construída



Maria José Botelho

15.12.15

CORVO, Açores


"É NA TERRA NÃO É NA LUA" - documentário de Gonçalo Tocha

  para relembrar um documentário maravilhoso

Nós os humanos


Abram os olhos. Somos umas bestas. No mau sentido. Somos primitivos. Somos primários. Por nossa causa corre um oceano de sangue todos os dias. Não é auscultando todos os nossos instintos ou encorajando a nossa natureza biológica a manifestar-se que conseguiremos afastar-nos da crueza da nossa condição. É lendo Platão. E construindo pontes suspensas. É tendo insónias. É desenvolvendo paranóias, conceitos filosóficos, poemas, desequilíbrios neuro químicos insanáveis, frisos de portas, birras de amor, grafismos, sistemas políticos, receitas de bacalhau, pormenores. 

É engraçado como cada época se foi considerando «de charneira» ao longo da história. A pretensão de se ser definitivo, a arrogância de ser «o último», a vaidade de se ser futuro é, há milénios, a mesmíssima cantiga. 
Temos de ser mais humanos. Reconhecer que somos as bestas que somos e arrependermo-nos disso. Temos de nos reduzir à nossa miserável insensibilidade, à pobreza dos nossos meios de entendimento e explicação, à brutalidade imperdoável dos nossos actos. O nosso pé foge-nos para o chinelo porque ainda não se acostumou a prender-se aos troncos das árvores, quanto mais habituar-se a usar sapato. 

A única atitude verdadeiramente civilizada é a fraqueza, a curiosidade, o desespero, a experiência, o amor desinteressado, a ansiedade artística, a sensação de vazio, a fé em Deus, o sentimento de impotência, o sentirmo-nos pequeninos, a confissão da ignorância, o susto da solidão, a esperança nos outros, o respeito pelo tempo e a bênção que é uma pessoa sentir-se perdida e poder andar às aranhas, à procura daquela ideia, daquela casa, daquela pessoa que já sabe de antemão que nunca há-de encontrar. 
O progresso é uma parvoíce. Pelo menos enquanto continuarmos a ser os animais que somos. 


Miguel Esteves Cardoso, in 'Explicações de Português' 

13.12.15

Infinito


Ryoji-Ikeda.

11.12.15

Há em toda a beleza uma amargura


Há em toda a beleza uma amargura 
secreta e confundida que é latente 
ambígua indecifrável duplamente 
oculta a si e a quem a olhar obscura 

Não fica igual aos vivos no que dura 
e a não pode entender qualquer vivente 
qual no cabelo orvalho ou brisa rente 
quanto mais perto mais se desfigura 

Ficando como Helena à luz do ocaso 
a língua dos dois reinos não lhe é azo 
senão de apartar tranças ofuscante 

Mas à tua beleza não foi dado 
qual morte a abrir teu juvenil estado 
crescer e nomear-se em cada instante? 

Walter Benjamin, in "Sonetos" 
(Tradução de Vasco Graça Moura)

8.12.15

Uma espécie de doutrina

Ter suficiente domínio sobre si mesmo para julgar os outros em comparação consigo e agir em relação a eles como nós quereríamos que eles agissem para connosco é o que se pode chamar a doutrina da humanidade; nada há mais para além disso. 
Se não se tem um coração misericordioso e compassivo, não se é um homem; se não se têm os sentimentos da vergonha e da aversão, não se é um homem; se não se têm os sentimentos da abnegação e da cortesia, não se é um homem; se não se tem o sentimento da verdade e do falso ou do justo e do injusto, não se é um homem. Um coração misericordioso e compassivo é o princípio da humanidade; o sentimento da vergonha e da aversão é o princípio da equidade e da justiça; o sentimento da abnegação e da cortesia é o princípio do convívio social; o sentimento do verdadeiro e do falso ou do justo e injusto é o princípio da sabedoria. Os homens têm estes quatro princípios, do mesmo modo que têm quatro membros. 

Confúcio (
 551 a.C. – 479 a.C )

6.12.15

os dias bons


Olhar esta imagem de Indira Gandi e Madre Teresa sentimos o quanto este tempo pertence a um passado longínquo. Apesar de não se terem passado assim tantos anos estas são figuras de um outro mundo, de um outro tempo, um tempo de esperança em que parecia que um futuro sorridente para todos ainda estava ao nosso alcance.

4.12.15

Foram ver o mar



Foram ver o mar e as dunas ainda intactas
e ele disse: o mais difícil é admitir que tudo o que existe
é indiferente à nossa inteligência




Maria José Botelho

Costa Vicentina e o vento sobre o mar


2.12.15

Cansaço

O que há em mim é sobretudo cansaço — 

Não disto nem daquilo, 
Nem sequer de tudo ou de nada: 
Cansaço assim mesmo, ele mesmo, 
Cansaço. 

A subtileza das sensações inúteis, 
As paixões violentas por coisa nenhuma, 
Os amores intensos por o suposto em alguém, 
Essas coisas todas — 
Essas e o que falta nelas eternamente —; 
Tudo isso faz um cansaço, 
Este cansaço, 
Cansaço. 

Há sem dúvida quem ame o infinito, 
Há sem dúvida quem deseje o impossível, 
Há sem dúvida quem não queira nada — 
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles: 
Porque eu amo infinitamente o finito, 
Porque eu desejo impossivelmente o possível, 
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser, 
Ou até se não puder ser... 

E o resultado? 
Para eles a vida vivida ou sonhada, 
Para eles o sonho sonhado ou vivido, 
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto... 
Para mim só um grande, um profundo, 
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço, 
Um supremíssimo cansaço, 
Íssimno, íssimo, íssimo, 
Cansaço... 

Álvaro de Campos, in "Poemas" 
(Heterónimo de Fernando Pessoa )

29.11.15

Nestes tempos de cólera temos que lembrar a Terra como um paraíso

                  Portugal

a última bilha de gás


a última bilha de gás durou dois meses e três dias,
com o gás dos últimos dias podia ter-me suicidado,
mas eis que se foram os três dias e estou aqui
e só tenho a dizer que não sei como arranjar dinheiro para outra bilha,
se vendessem o gás a retalho comprava apenas o gás da morte,
e mesmo assim tinha de comprá-lo fiado,
não sei o que vai ser da minha vida,
tão cara, Deus meu, que está a morte,
porque já me não fiam nada onde comprava tudo,
mesmo coisas rápidas,
se eu fosse judeu e se com um pouco de jeito isto por aqui acabasse nazi,
já seria mais fácil,
como diria o outro: a minha vida longa por muito pouco,
uma bilha de gás,
a minha vida quotidiana e a eternidade que já ouvi dizer que a habita e move,
não me queixo de nada no mundo senão do preço das bilhas de gás, 
ou então de já mas não venderem fiado
e a pagar um dia a conta toda por junto:
corpo e alma e bilhas de gás na eternidade
- e dizem-me que há tanto gás por esse mundo fora,
países inteiros cheios de gás por baixo!


Herberto Helder in A Morte sem Mestre, 2014

24.11.15

Sei que tudo está ligado


Sei que tudo está ligado à terra, a rodar em si mesmo
está tudo no mesmo e em  lugar nenhum

Vistas de perto as pessoas estão próximas da matéria
são parentes das árvores, das pedras, do mar
e têm sempre uma história que comove
que lembra e muda a nossa história

Vistas de perto as pessoas têm também uma sombra
quase imperceptível, mas está ali: a sombra-luz
que denuncia a sua inteligência
a possibilidade de se transcenderem
ou de enlouquecerem

Vistas de longe as pessoas parecem ainda mais sós
saí delas o peso da condição
levam consigo o mundo que viram e
quando olham para muito longe param
não sei se para fixar ou se para lembrar


Maria José Botelho
09-2015

Faroe


22.11.15

A escolha e o ser-se capaz


A falência própria não tem que ver por força com o «não se ser capaz». Tem que ver com o não se ser capaz de se escolher aquilo de que também se é capaz; não tem que ver com o não se poder, mas com o não se aceitar o que se pode; não é forçosamente um problema de capacidades mas a escolha daquela que deve ser. Mas escolher a que deve ser, já exige em nós a capacidade disso. De modo que se não é capaz de se ser capaz. 

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente IV' / Citador

é preciso resistir

(Rock Dan Bristy)

21.11.15

Escritor

É um escritor ou então a mulher partiu com outro,
e o corpo não recuperou a vontade
de se preocupar com a roupa.
Espontâneo, vê-se; tudo o que traz vestido
apareceu-lhe à frente como numa colisão.
No entanto é discreto.
Tem a idade em que já não se desejam os olhares dos outros.
Branco, o cabelo transmite paz e
uma pequena desistência.
Tem cachimbo, óculos,
na mesa revistas francesas sobre a alma e os laboratórios que a
estudam;
pega numa folha e começa a escrever.
Tem ar sóbrio, o corpo não dança,
vê-se que há muito venceu o medo de não ser igual aos outros.
Escreve; passa a mão sobre a orelha.
É um escritor, em definitivo.
A luta não é com a solidão, vê-se que sabe usá-la,
percebe a sua natureza.

Gonçalo M. Tavares

18.11.15

Anne


O mundo está a ruir

e só Anne continua a escrever
secretamente, no mesmo lugar
sem respirar, sem existir, a escrever

O mundo está a arder dentro das cidades
dentro da cabeça dos homens
Há lixo de ódio e de horror por todo o lado

e Anne escreve, secretamente
nem as árvores teriam tanto silêncio

No mundo vai haver sempre uma nova manhã
e tudo se transforma lentamente

Se Anne se salvar acordará para a claridade
para o clamor da escuridão 
a desfazer-se lentamente na luz do dia


Maria José Botelho

15.11.15

Ferro

Alberto Burri

O medo e o resto

"Comecemos por falar daquilo com que poderíamos concluir: o medo. A Europa percebeu que se torna mais vulnerável à medida que se intensifica a guerra de múltiplas frentes na Síria. A carnificina de Paris não é apenas uma declaração de guerra do Estado Islâmico (EI) à França — visa também a Europa, em plena crise dos refugiados. A sua mais sinistra ameaça resume-se num dito de Bin Laden: “Nós temos jovens que amam a morte mais do que vós amais a vida.”
O terror do EI tem um desígnio estratégico com muitos vectores: demonstrar a força dos jihadistas e galvanizar os adeptos, provocar a partir do medo recíprocas reacções de ódio para romper as críticas pontes entre a Europa e as suas comunidades islâmicas e, enfim, fazer inflectir a política dos Estados europeus que intervêm na Síria, no Iraque ou na África, e também dissuadir os outros de o perseguirem.
O medo é uma das mais poderosas paixões. Dele escreveu Georges Bernanos a partir da sua experiência na Guerra Civil de Espanha: “O medo, o medo verdadeiro, é um delírio furioso. De todas as loucuras de que somos capazes, o medo é a mais cruel. Nada iguala o seu vigor, nada pode suster o seu choque. A cólera, que se lhe assemelha, não passa de um sentimento passageiro, uma brusca dissipação das forças da alma. Para mais é cega. O medo, ao contrário, desde que se ultrapasse a primeira angústia, forma com o ódio um dos mais estáveis compostos psicológicos que há.”
O veterano politólogo francês Pierre Hassner, para quem a “desordem” substituiu a “ordem internacional”, fala de medos contraditórios. “Estamos entre dois medos: temos razão de ter medo do terrorismo, mas também de ter medo das medidas que se tomam contra o terrorismo. Os meios de protecção que temos tornaram-se eles próprios ameaçadores, (...) seja pelas ameaças ligadas às exigências da defesa ou pelas ameaças às liberdades individuais que constituem as medidas de segurança adoptadas pelos governos.” Previne contra o modelo da reacção de George W. Bush e dos neoconservadores após o 11 de Setembro.
Escrevia ontem o analista francês François Heisbourg: “É a partir de agora que se joga a derrota necessária — ou a possível vitória dos jihadistas. E em primeiro lugar no plano interno. Será forte a tentação de preparar uma legislação de excepção, rápida e mal feita: um Patriot Act à francesa.”
A derrota do terrorismo será determinada pela reacção da sociedade. E também da escala e do timing da próxima atrocidade, previne a The Economist. Se os cidadãos se convencerem de que os serviços de segurança se tornaram incapazes de lhes assegurar um mínimo de protecção, muito pode mudar, suscitando o agravamento da tensão com as comunidades muçulmanas. “O Estado Islâmico procura desencadear a guerra civil em França”, escrevia ontem no Monde Gilles Kepel, um especialista do islão."
(...)
JORNAL  público  -      -   14/11/2015 - 20:31

in Ignoto

Pedro Valdez Cardoso, 2015, CAS, Sines

7.10.15

li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
¿e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a 
paixão e eu me perdesse nela,
a paixão grega


Herberto Helder in A Faca não corta o Fogo

12.9.15

Para trás fica o vazio... o vazio da vida, o vazio das palavras

Um berço deixado para trás pelos refugiados curdos sírios se encontra na fronteira turco-síria perto Suruc, neste 27 de setembro de 2014. Foto e legenda por Murad Sezer / Reuters.

6.9.15

Caminho

Anselm Kiefer/ Siegfried´s Difficult Way to Brünhilde.

Os campos, novamente




Os campos, sob a forma de centros e lugares de retenção, voltaram à Europa e disseminaram-se por toda a fronteira do Sul da União Europeia. São espaços geridos pela polícia, subtraídos à ordem jurídica normal, que funcionam como diques para reter o enorme caudal dos “fluxos migratórios”. A situação está fora de controlo e assemelha-se àquela “explosão” que se deu no coração do continente europeu entre as duas guerras mundiais, assim descrita por Hannah Arendt em O Imperialismo, num capítulo em que a filósofa analisa o declínio do Estado-nação e o fim dos direitos do homem: “[As guerras civis] desencadearam a emigração de grupos que, menos felizes do que os seus predecessores das guerras de religião, não foram acolhidos em nenhum sítio. Tendo fugido da sua pátria, viram-se sem pátria; tendo abandonado o seu Estado, tornaram-se apátridas; tendo sido privados dos direitos que a sua humanidade lhes conferia, ficaram desprovidos de direitos”. E num artigo de 1943, We Refugees, escrito para um jornal judeu de língua inglesa, Arendt terminava em tom de exaltação, como se tivesse acabado de identificar um novo sujeito da história: “Os refugiados representam a vanguarda dos seus povos”. Mas o refugiado que Arendt definiu a partir do modelo do apátrida — produto de uma dissociação entre as fronteiras administrativas do Estado e a realidade política dos homens — implicava, como o nome indica, a ideia de refúgio, tanto geográfico como jurídico: os refugiados judeus que, no início da Segunda Guerra Mundial, conseguiram embarcar para a América tinham um destino que os orientava à partida e contavam com a vontade política de uma protecção. Os actuais “migrantes” que se lançam ao mar para alcançarem o território europeu são, pura e simplesmente, “deslocados”, fogem da guerra e da miséria, na esperança de conseguirem encontrar um lugar, uma direcção, um sentido. Verdadeiros refugiados na Europa, no sentido jurídico da Convenção de Genebra de 1951, são uma ínfima parte deste fluxo de forçados migrantes que, mal entram em território europeu, são ainda menos do que párias: são uma massa incontrolada de indesejáveis estrangeiros, assaltantes contra os quais a fortaleza europeia não consegue erguer muros eficazes nem fazer valer as suas armas de dissuasão. À nossa frente, está a passar-se algo que não queremos olhar: o regresso a formas de brutalização e barbárie, a instauração de espaços anómicos onde, novamente, “tudo é possível”. Sem conseguirmos vislumbrar soluções para o problema, desistimos também de uma vigilância capaz de nos lançar este alerta: os campos que regressaram à Europa, em grande número e por todo o lado, muito embora não sejam regidos pelo regime de excepção que presidiu à tanatopolítica — à política da morte — dos regimes totalitários, não nos dão garantias de que nenhum descarrilamento terá lugar e nenhuma inclinação criminosa latente poderá seguir o seu curso. Não podemos hoje ignorar que há uma lógica terrível imanente ao campo como figura: ele acaba por desenvolver uma zona cinzenta onde todas as situações-limite, à margem de todos os direitos, se tornam possíveis. A imensa bibliografia sobre o que aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial, tanto os testemunhos dos sobreviventes como as descrições e análises historiográficas, mostram que uma biopolítica humanitária, como aquela que se tenta difundir na projecção pública dos campos actuais, também esteve presente nos campos de retenção nazis, antes da instauração dos campos de extermínio. A fé na história e na razão, como sabemos, é a última religião de doutos muito imprudentes.

ANTÓNIO GUERREIRO 

17.8.15

O SOL

Na infância o sol era um companheiro mais alto,
Que aparecera primeiro no campo de futebol, e aí, parado,
Guardava as costas da baliza e a erva que se tornava quente.
Como se o sol fosse de facto um instrumento de cozinha,
Aperfeiçoado, antigo, mas instrumento, matéria
Que os meninos agarravam com os dedos e cuja
Intensidade podiam por vontade própria regular. 
Por exemplo: quando a luz era excessiva 
Os dedos protegiam os olhos. Outras vezes 
O corpo parecia a conclusão
Natural, instintiva, do calor que vinha de cima:
Recebíamos o sol como o ponto final recebe
Uma frase. Fazia mais sol quando eu tinha seis anos
(quem o fazia?) ou com o tempo e o tédio
Me fui distraindo?

Gonçalo M. Tavares

16.8.15

Girassol



"Um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh".

Manoel de Barros

A presença mais pura


Nada do mundo mais próximo
mas aqueles a quem negamos a palavra
o amor, certas enfermidades, a presença mais pura
ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
«a que distância da língua comum deixaste
o teu coração?»

A altura desesperada do azul
no teu retrato de adolescente há centenas de anos
a extinção dos lírios no jardim municipal
o mar desta baía em ruínas ou se quiseres
os sacos do supermercado que se expandem nas gavetas
as conversas ainda surpreendentemente escolares
soletradas em família
a fadiga da corrida domingueira pela mata
as senhas da lavandaria com um "não esquecer" fixado
o terror que temos
de certos encontros de acaso
porque deixamos de saber dos outros
coisas tão elementares
o próprio nome
Ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
«a que distância deixaste
o coração?»


José Tolentino Mendonça
de A Que Distância Deixaste o Coração

 

23.7.15

UMA CERTA QUANTIDADE

Uma certa quantidade de gente à procura 
de gente à procura duma certa quantidade 

Soma: 
uma paisagem extremamente à procura 
o problema da luz (adrede ligado ao problema da vergonha) 
e o problema do quarto-atelier-avião 

Entretanto 
e justamente quando 
já não eram precisos 
apareceram os poetas à procura 
e a querer multiplicar tudo por dez 
má raça que eles têm 
ou muito inteligentes ou muito estúpidos 
pois uma e outra coisa eles são 
Jesus Aristóteles Platão 
abrem o mapa: 
dói aqui 
dói acolá 

E resulta que também estes andavam à procura 
duma certa quantidade de gente 
que saía à procura mas por outras bandas 
bandas que por seu turno também procuravam imenso 
um jeito certo de andar à procura deles 
visto todos buscarem quem andasse 
incautamente por ali a procurar 

Que susto se de repente alguém a sério encontrasse 
que certo se esse alguém fosse um adolescente 
como se é uma nuvem um atelier um astro 

Mário Cesariny, in "Pena Capital" 

10.6.15

"Este lugar não existe" disco single s/ titulo (1968)



“Este lugar não existe, fica na Arábia Saudita, no deserto.
Gosto do deserto.
Levei tábuas e pregos.
Ferramentas, as belas ferramentas dos homens.
Levei água, víveres, sementes.
Não eram sementes de trigo ou aveia, nem de cravos – também não eram sementes de máquinas.
As belas máquinas dos homens.
Não me lembro se fui pelo ar.
Não me lembro da lenta e progressiva despedida, quando se anda pelas terras, o labirinto doloroso, a alegria, quando se vai pelas terras, e nos despedimos, primeiro de um corpo, depois de um sítio, depois de um odor, uma luz, uma voz, os arrabaldes, os sinais, as palavras, as temperaturas.
Não me lembro de quando se vai deixando.
Foi portanto pelo ar.
Levei tudo para experimentar o deserto.
Comprei tábuas, água, sementes, ferramentas – as belas ferramentas.
Tenho uma pequena ciência.
Aprendi.
Vamos lá ver esse lugar que não existe, na Arábia Saudita, no deserto.
Ficava no meio.
No meio é bom – há uma coisa que se chama à volta.
Serve para estar bem só.
Comprei tábuas, sementes e águas.
Não era trigo, nem cravos, nem sementes de cores, das cores que amamos com uma dor no corpo.
Eram sementes de cabeças de crianças.
Tenho uma pequena ciência.
Fiz como nos livros.
Dividi-me em sete dias.
Com os meus dez dedos enchi os dias, e depois com os meus ouvidos e o meu coração sôfrego.
Da minha virgindade dos desertos tirei a minha ciência dos desertos.
Espalhei os dez dedos pelos dias e, primeiro, criei os céus e as areias daquele lugar que não havia.
Depois, os dois luzeiros: um para o dia e o outro para a noite do deserto.
No terceiro dia, fiz uma casa com um alpendre e uma cadeira no alpendre.
Foi então que senti o sangue a bater na minha noite e soube do sinistro silêncio de toda a minha vida, e era o quarto dia.
No quinto, lancei às areias, a toda a volta da casa, até onde podia, todas aquelas sementes que não eram de cravos, nem de trigo, nem de algodão – as sementes –, lancei à minha volta o futuro nascimento, e fiquei no meio do nascimento, cercado pelo futuro nascimento.
Depois pensei, como pode pensar um animal criador extenuado, porque eu tinha-me criado a mim mesmo, e era uma criatura quente e exausta, e estava cheio da dor e da alegria da minha obra – era então o sexto dia.
E no sétimo dia vi que tudo tinha um sentido, e sentei-me na minha casa, no meu alpendre, na minha cadeira.
Pela escrita tinha eu pois chegado ao sétimo dia, ligando tudo, ligando o que não é como que visível mas é como que audível, semelhante às correntes de água subterrânea que o nosso corpo solitário sente deitado sobre a terra.
Estava sentado na cadeira criada no terceiro dia, rodeado pela sementeira do quinto dia.
Era uma sementeira de cabeças de crianças.
Não serão nabos ou rosas?, perguntei no ervanário.
Não eram.
Porque principiaram a sair da areia na tarde do sétimo dia, e floresceram, sombrias e doces cabeças de crianças – era terrível.
Seriam verdes-garrafa?
Cabeças de crianças do tamanho de cabeças de crianças – vivas, oscilantes, latejantes sobre os pedúnculos que irrompiam do deserto, à volta da minha casa, do meu alpendre, da minha cadeira, do meu coração que nunca mais dormiria.
Começaram então a sussurrar – e eu pensei: a aragem do fim do sétimo dia passa sobre um campo de corolas verdes, como no mundo, e há o sussurro vegetal, o ondular verde-garrafa, em frente da casa de um proprietário como no mundo.
Mas eram cabeças de crianças.
E as minhas tábuas e pregos e víveres, a minha água e a cadeira, e o meu coração, estavam cercados pelo sussurro das cabeças das crianças.
Eu nunca mais dormiria – era de noite, era agora a minha noite.
E então elas começaram a cantar – na minha noite.
Eu estava sentado na cadeira, no alpendre, na casa – e as vozes levantavam-se, eram altas, altas, inocentes e terríveis, cada vez mais belas, mais sufocantes.
No deserto.
O meu coração nunca mais dormiria.
Não serão cravos, ou nabos, ou máquinas?, perguntei no ervanário.
Eram cabeças de crianças.”

Herberto Helder