29.11.15

Nestes tempos de cólera temos que lembrar a Terra como um paraíso

                  Portugal

a última bilha de gás


a última bilha de gás durou dois meses e três dias,
com o gás dos últimos dias podia ter-me suicidado,
mas eis que se foram os três dias e estou aqui
e só tenho a dizer que não sei como arranjar dinheiro para outra bilha,
se vendessem o gás a retalho comprava apenas o gás da morte,
e mesmo assim tinha de comprá-lo fiado,
não sei o que vai ser da minha vida,
tão cara, Deus meu, que está a morte,
porque já me não fiam nada onde comprava tudo,
mesmo coisas rápidas,
se eu fosse judeu e se com um pouco de jeito isto por aqui acabasse nazi,
já seria mais fácil,
como diria o outro: a minha vida longa por muito pouco,
uma bilha de gás,
a minha vida quotidiana e a eternidade que já ouvi dizer que a habita e move,
não me queixo de nada no mundo senão do preço das bilhas de gás, 
ou então de já mas não venderem fiado
e a pagar um dia a conta toda por junto:
corpo e alma e bilhas de gás na eternidade
- e dizem-me que há tanto gás por esse mundo fora,
países inteiros cheios de gás por baixo!


Herberto Helder in A Morte sem Mestre, 2014

24.11.15

Sei que tudo está ligado


Sei que tudo está ligado à terra, a rodar em si mesmo
está tudo no mesmo e em  lugar nenhum

Vistas de perto as pessoas estão próximas da matéria
são parentes das árvores, das pedras, do mar
e têm sempre uma história que comove
que lembra e muda a nossa história

Vistas de perto as pessoas têm também uma sombra
quase imperceptível, mas está ali: a sombra-luz
que denuncia a sua inteligência
a possibilidade de se transcenderem
ou de enlouquecerem

Vistas de longe as pessoas parecem ainda mais sós
saí delas o peso da condição
levam consigo o mundo que viram e
quando olham para muito longe param
não sei se para fixar ou se para lembrar


Maria José Botelho
09-2015

Faroe


22.11.15

A escolha e o ser-se capaz


A falência própria não tem que ver por força com o «não se ser capaz». Tem que ver com o não se ser capaz de se escolher aquilo de que também se é capaz; não tem que ver com o não se poder, mas com o não se aceitar o que se pode; não é forçosamente um problema de capacidades mas a escolha daquela que deve ser. Mas escolher a que deve ser, já exige em nós a capacidade disso. De modo que se não é capaz de se ser capaz. 

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente IV' / Citador

é preciso resistir

(Rock Dan Bristy)

21.11.15

Escritor

É um escritor ou então a mulher partiu com outro,
e o corpo não recuperou a vontade
de se preocupar com a roupa.
Espontâneo, vê-se; tudo o que traz vestido
apareceu-lhe à frente como numa colisão.
No entanto é discreto.
Tem a idade em que já não se desejam os olhares dos outros.
Branco, o cabelo transmite paz e
uma pequena desistência.
Tem cachimbo, óculos,
na mesa revistas francesas sobre a alma e os laboratórios que a
estudam;
pega numa folha e começa a escrever.
Tem ar sóbrio, o corpo não dança,
vê-se que há muito venceu o medo de não ser igual aos outros.
Escreve; passa a mão sobre a orelha.
É um escritor, em definitivo.
A luta não é com a solidão, vê-se que sabe usá-la,
percebe a sua natureza.

Gonçalo M. Tavares

18.11.15

Anne


O mundo está a ruir

e só Anne continua a escrever
secretamente, no mesmo lugar
sem respirar, sem existir, a escrever

O mundo está a arder dentro das cidades
dentro da cabeça dos homens
Há lixo de ódio e de horror por todo o lado

e Anne escreve, secretamente
nem as árvores teriam tanto silêncio

No mundo vai haver sempre uma nova manhã
e tudo se transforma lentamente

Se Anne se salvar acordará para a claridade
para o clamor da escuridão 
a desfazer-se lentamente na luz do dia


Maria José Botelho

15.11.15

Ferro

Alberto Burri

O medo e o resto

"Comecemos por falar daquilo com que poderíamos concluir: o medo. A Europa percebeu que se torna mais vulnerável à medida que se intensifica a guerra de múltiplas frentes na Síria. A carnificina de Paris não é apenas uma declaração de guerra do Estado Islâmico (EI) à França — visa também a Europa, em plena crise dos refugiados. A sua mais sinistra ameaça resume-se num dito de Bin Laden: “Nós temos jovens que amam a morte mais do que vós amais a vida.”
O terror do EI tem um desígnio estratégico com muitos vectores: demonstrar a força dos jihadistas e galvanizar os adeptos, provocar a partir do medo recíprocas reacções de ódio para romper as críticas pontes entre a Europa e as suas comunidades islâmicas e, enfim, fazer inflectir a política dos Estados europeus que intervêm na Síria, no Iraque ou na África, e também dissuadir os outros de o perseguirem.
O medo é uma das mais poderosas paixões. Dele escreveu Georges Bernanos a partir da sua experiência na Guerra Civil de Espanha: “O medo, o medo verdadeiro, é um delírio furioso. De todas as loucuras de que somos capazes, o medo é a mais cruel. Nada iguala o seu vigor, nada pode suster o seu choque. A cólera, que se lhe assemelha, não passa de um sentimento passageiro, uma brusca dissipação das forças da alma. Para mais é cega. O medo, ao contrário, desde que se ultrapasse a primeira angústia, forma com o ódio um dos mais estáveis compostos psicológicos que há.”
O veterano politólogo francês Pierre Hassner, para quem a “desordem” substituiu a “ordem internacional”, fala de medos contraditórios. “Estamos entre dois medos: temos razão de ter medo do terrorismo, mas também de ter medo das medidas que se tomam contra o terrorismo. Os meios de protecção que temos tornaram-se eles próprios ameaçadores, (...) seja pelas ameaças ligadas às exigências da defesa ou pelas ameaças às liberdades individuais que constituem as medidas de segurança adoptadas pelos governos.” Previne contra o modelo da reacção de George W. Bush e dos neoconservadores após o 11 de Setembro.
Escrevia ontem o analista francês François Heisbourg: “É a partir de agora que se joga a derrota necessária — ou a possível vitória dos jihadistas. E em primeiro lugar no plano interno. Será forte a tentação de preparar uma legislação de excepção, rápida e mal feita: um Patriot Act à francesa.”
A derrota do terrorismo será determinada pela reacção da sociedade. E também da escala e do timing da próxima atrocidade, previne a The Economist. Se os cidadãos se convencerem de que os serviços de segurança se tornaram incapazes de lhes assegurar um mínimo de protecção, muito pode mudar, suscitando o agravamento da tensão com as comunidades muçulmanas. “O Estado Islâmico procura desencadear a guerra civil em França”, escrevia ontem no Monde Gilles Kepel, um especialista do islão."
(...)
JORNAL  público  -      -   14/11/2015 - 20:31

in Ignoto

Pedro Valdez Cardoso, 2015, CAS, Sines