30.12.15

Tratado geral das grandezas do ínfimo


A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.

Manoel de Barros (1916 - 2014)  

16.12.15

Ouvia-se milhões de pessoas a criar o futuro

Sei que tudo está ligado
a uma gravidade, a um eco
que se propaga para fora do tempo
Tudo está ligado às coisas incompreensíveis
à matéria negra, ao que está lá e não tem nome
nem presença, apenas pressentimento

As imagens vêm de dentro das pessoas
e outras são produzidas
durante dia e noite
O mundo dos homens fabrica-as aos milhões
segundo a segundo
para que tudo permaneça e nada morra
mas tudo desaparece e nada fica

Ela pensava que se amasse muito o mundo
ele devolvia-lhe a sua verdade
Ela dizia que pensar no futuro era criar o futuro
e pensava na harmonia da vida das pessoas
com a das árvores e a de todos os elementos

Segundo a segundo
milhões de pessoas criavam o futuro
ouvia-se um eco do futuro a ser criado
que se propagava pelo espaço

Também se ouvia música e o som do mar
Ela acreditava que todas as pessoas podiam
criar um futuro modelo
e viverem a realidade numa ilusão construída



Maria José Botelho

15.12.15

CORVO, Açores


"É NA TERRA NÃO É NA LUA" - documentário de Gonçalo Tocha

  para relembrar um documentário maravilhoso

Nós os humanos


Abram os olhos. Somos umas bestas. No mau sentido. Somos primitivos. Somos primários. Por nossa causa corre um oceano de sangue todos os dias. Não é auscultando todos os nossos instintos ou encorajando a nossa natureza biológica a manifestar-se que conseguiremos afastar-nos da crueza da nossa condição. É lendo Platão. E construindo pontes suspensas. É tendo insónias. É desenvolvendo paranóias, conceitos filosóficos, poemas, desequilíbrios neuro químicos insanáveis, frisos de portas, birras de amor, grafismos, sistemas políticos, receitas de bacalhau, pormenores. 

É engraçado como cada época se foi considerando «de charneira» ao longo da história. A pretensão de se ser definitivo, a arrogância de ser «o último», a vaidade de se ser futuro é, há milénios, a mesmíssima cantiga. 
Temos de ser mais humanos. Reconhecer que somos as bestas que somos e arrependermo-nos disso. Temos de nos reduzir à nossa miserável insensibilidade, à pobreza dos nossos meios de entendimento e explicação, à brutalidade imperdoável dos nossos actos. O nosso pé foge-nos para o chinelo porque ainda não se acostumou a prender-se aos troncos das árvores, quanto mais habituar-se a usar sapato. 

A única atitude verdadeiramente civilizada é a fraqueza, a curiosidade, o desespero, a experiência, o amor desinteressado, a ansiedade artística, a sensação de vazio, a fé em Deus, o sentimento de impotência, o sentirmo-nos pequeninos, a confissão da ignorância, o susto da solidão, a esperança nos outros, o respeito pelo tempo e a bênção que é uma pessoa sentir-se perdida e poder andar às aranhas, à procura daquela ideia, daquela casa, daquela pessoa que já sabe de antemão que nunca há-de encontrar. 
O progresso é uma parvoíce. Pelo menos enquanto continuarmos a ser os animais que somos. 


Miguel Esteves Cardoso, in 'Explicações de Português' 

13.12.15

Infinito


Ryoji-Ikeda.

11.12.15

Há em toda a beleza uma amargura


Há em toda a beleza uma amargura 
secreta e confundida que é latente 
ambígua indecifrável duplamente 
oculta a si e a quem a olhar obscura 

Não fica igual aos vivos no que dura 
e a não pode entender qualquer vivente 
qual no cabelo orvalho ou brisa rente 
quanto mais perto mais se desfigura 

Ficando como Helena à luz do ocaso 
a língua dos dois reinos não lhe é azo 
senão de apartar tranças ofuscante 

Mas à tua beleza não foi dado 
qual morte a abrir teu juvenil estado 
crescer e nomear-se em cada instante? 

Walter Benjamin, in "Sonetos" 
(Tradução de Vasco Graça Moura)

8.12.15

Uma espécie de doutrina

Ter suficiente domínio sobre si mesmo para julgar os outros em comparação consigo e agir em relação a eles como nós quereríamos que eles agissem para connosco é o que se pode chamar a doutrina da humanidade; nada há mais para além disso. 
Se não se tem um coração misericordioso e compassivo, não se é um homem; se não se têm os sentimentos da vergonha e da aversão, não se é um homem; se não se têm os sentimentos da abnegação e da cortesia, não se é um homem; se não se tem o sentimento da verdade e do falso ou do justo e do injusto, não se é um homem. Um coração misericordioso e compassivo é o princípio da humanidade; o sentimento da vergonha e da aversão é o princípio da equidade e da justiça; o sentimento da abnegação e da cortesia é o princípio do convívio social; o sentimento do verdadeiro e do falso ou do justo e injusto é o princípio da sabedoria. Os homens têm estes quatro princípios, do mesmo modo que têm quatro membros. 

Confúcio (
 551 a.C. – 479 a.C )

6.12.15

os dias bons


Olhar esta imagem de Indira Gandi e Madre Teresa sentimos o quanto este tempo pertence a um passado longínquo. Apesar de não se terem passado assim tantos anos estas são figuras de um outro mundo, de um outro tempo, um tempo de esperança em que parecia que um futuro sorridente para todos ainda estava ao nosso alcance.

4.12.15

Foram ver o mar



Foram ver o mar e as dunas ainda intactas
e ele disse: o mais difícil é admitir que tudo o que existe
é indiferente à nossa inteligência




Maria José Botelho

Costa Vicentina e o vento sobre o mar


2.12.15

Cansaço

O que há em mim é sobretudo cansaço — 

Não disto nem daquilo, 
Nem sequer de tudo ou de nada: 
Cansaço assim mesmo, ele mesmo, 
Cansaço. 

A subtileza das sensações inúteis, 
As paixões violentas por coisa nenhuma, 
Os amores intensos por o suposto em alguém, 
Essas coisas todas — 
Essas e o que falta nelas eternamente —; 
Tudo isso faz um cansaço, 
Este cansaço, 
Cansaço. 

Há sem dúvida quem ame o infinito, 
Há sem dúvida quem deseje o impossível, 
Há sem dúvida quem não queira nada — 
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles: 
Porque eu amo infinitamente o finito, 
Porque eu desejo impossivelmente o possível, 
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser, 
Ou até se não puder ser... 

E o resultado? 
Para eles a vida vivida ou sonhada, 
Para eles o sonho sonhado ou vivido, 
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto... 
Para mim só um grande, um profundo, 
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço, 
Um supremíssimo cansaço, 
Íssimno, íssimo, íssimo, 
Cansaço... 

Álvaro de Campos, in "Poemas" 
(Heterónimo de Fernando Pessoa )