Há uma espécie de concurso entre as
elites europeias e americanas de esquerda: quem insulta mais Donald Trump? Quem
consegue escolher os epítetos mais violentos? Racista, boçal, cretino, sexista,
corrupto, inculto e xenófobo estão entre os mais utilizados. Isto para além das
classificações brandas de fascista e populista.
No entanto, o problema não é o de qualificar Trump nem de
sublinhar a sua incultura e a sua falta de sofisticação. O problema consiste em
saber por que razão foi eleito. Contra a opinião sondada e publicada, este
senhor foi escolhido por 60 milhões de americanos que, creio, não são todos
racistas, machistas, bandidos, milionários, fascistas e corruptos. E, se
fossem, a questão era ainda mais difícil: como é possível que houvesse tantos
assim?
O problema não é o de classificar os defeitos de Trump e
seus apoiantes nem de mostrar como são violentos, intolerantes, xenófobos e
déspotas. O problema é o de saber por que razões perderam os virtuosos, os
democratas, os liberais, os intelectuais, os jornalistas e os artistas. O
problema é o de saber por que razão os pobres, os desempregados e os
marginalizados não votaram em quem deveriam votar, isto é, em quem pensa que a
solidariedade, a segurança social, o emprego e a igualdade são exclusivos dos
democratas e das esquerdas.
As esquerdas em geral, incluindo artistas, intelectuais,
jornalistas, liberais americanos e progressistas europeus, não suportam não ter
percebido nem ter previsto o que aconteceu. Como não admitem que são, tantas
vezes, responsáveis pelas derivas políticas dos seus países.
Já correm pelo mundo explicações fabulosas sobre estas
eleições. As mais hilariantes são duas. Uma diz que, além dos machistas e dos
racistas, votaram em Trump os analfabetos, os desesperados, os marginalizados
pelo progresso, os desempregados e os supersticiosos. A outra diz que o fiasco
das sondagens, dos estudos de opinião e dos jornalistas se deve ao facto de os
reaccionários terem vergonha de dizer em quem votariam! Por outras palavras:
quem não presta votou em Trump; e quem votou em Trump enganou-nos!
Tal como os democratas em geral, as esquerdas atribuem
sempre as culpas das suas derrotas aos defeitos dos outros, da extrema-direita,
dos ricos, dos padres, dos fascistas, dos proprietários, dos patrões, dos
corruptos e agora dos populistas. Não pensam que os culpados são ou também são
eles, os democratas, ou elas próprias, as esquerdas. Raramente se dão conta de
uma verdade velha, com dezenas de anos, mas sempre esquecida: as democracias
não caem por serem atacadas, não são derrubadas pelos seus inimigos, caem por
sua própria responsabilidade, porque enfraquecem, porque se dividem, porque
perdem tempo e energias com quezílias idiotas e porque deixam que o sistema
político perca de vista as populações. Também, finalmente, porque acreditam nas
suas virtudes, porque confiam na sua racionalidade e porque consideram que têm
o exclusivo da bondade e da compaixão.
As esquerdas (nas suas versões americana e europeia)
apresentam-se cada vez mais como uma soma de sindicatos e de clientelas:
mulheres, negros, operários da indústria, desempregados, pensionistas,
homossexuais, artistas, intelectuais, imigrantes, latinos ou muçulmanos. Todas
as minorias imagináveis, incluindo as mulheres que o não são. Às vezes,
resulta. Mas acaba sempre por não resultar. As esquerdas abandonaram as ideias e
os direitos universais dos cidadãos e valorizam as suas circunstâncias étnicas,
sociais ou sexuais. Como também abandonaram a capacidade de pensar a identidade
nacional, entidade ainda hoje vigorosa e reduto de referências pessoais e
culturais.
Acima de tudo, a arrogância e a superioridade moral,
cultural e política das esquerdas têm destes resultados: afastam-nas do povo e
favorecem os inimigos da democracia.
António Barreto 13-11-2016 no Diário de Notícias