26.7.17

Gentrificação

1. Sabes, Lisboa? Já não há anjos debruçados nos telhados das vielas.
2. Vozes. Passaram mais ou menos quinze anos, desde que o boom do turismo começou, em meados dos anos 2010. OJE hIJE HHoje, depois de uma semana de hesitação, desci à cidade baixa, aquilo a que antigamente chamávamos, simplesmente, baixa. Não a reconheci.
3. Não me entendam mal, a zona está quente – “hot” para usar a linguagem dos locais –, cheia de sítios da moda, frequentados quase exclusivamente por turistas, limpa, com grande animação de rua; por todo o lado, em cada esquina, aos molhes, às dezenas, cruzei-me com grupos de britânicos, franceses, russos, cheguei mesmo a ver, julgo (de relance) um casal de portugueses, pelo menos falavam português sem sotaque.
4. Todos se entendem em inglês, até os espanhóis são obrigados a arranhar a língua de Shakespeare, e quando digo arranhar não é só no sentido figurado. No espaço balizado entre o rio e o marquês a que este, há quase 300 anos, deu um rosto rectilíneo, com um traçado geometricamente pouco português, acotovelavam-se milhares de turistas, novos residentes, gente de algo vinda de algures.
5. As casas da zona que ainda são de portugueses, estão quase todas dedicadas ao chamado turismo local. E há “duplexes” luxuosos com vista para o rio, ou pátios ajardinados nas traseiras, propriedade de milionários árabes, brasileiros ou americanos. Todas as semanas, e a coisa dura há mais de 15 anos, os jornais on-line, únicos que há, anunciam que uma nova vedeta, do espectáculo, do desporto, ou da moda, comprou uma casa em Portugal.
6. Mas só os mais ricos, eu diria mesmo os escandalosamente ricos, podem comprar nesta zona. a gentrificação ultrapassou as barreiras da cidade, conquistou novas regiões, toda a linha de Cascais foi tomada por estrangeiros, a esmagadora maioria chineses, fala-se em cem mil, ainda que não se saiba bem; alguns comentadores dizem que é um exagero, que é impossível serem tantos, eu faço-lhes notar que, afinal, cem mil cidadãos não são mais do que 0,005% da população chinesa.
7. Para fugir à confusão do centro, subi as colinas, mas foi pior a emenda que o soneto: em cada rua, a caminho do castelo, nas vielas do bairro alto, porta sim porta a seguir, um bar com petiscos anuncia “port wine” e “fish and chips” (o mau gosto gastronómico acompanha as marés). Além disso, o risco de atropelamento por um tuktuk é grande.
8. Um amigo perguntou-me há dias “o que é que os turistas que vêm a Lisboa não vêem?”. Cocei a cabeça, hesitei, acenei. “Portugueses!”, e o meu interlocutor riu-se a tempo de me impedir de o fazer. Seria verdade, pensei, insciente do olhar desiludido do meu amigo, que julgara ter graça e só tivera razão. E recordei uma frase antiga a propósito de Veneza, ou talvez de alguma cidade turística, como Lisboa ou o Porto: “ninguém gosta de fazer turismo para ver turistas”. Talvez fosse dantes, mas agora é tudo assim, e os locais verdadeiramente dignos de se ver banalizaram-se. No mau sentido. Gentrificaram.
9. Vozes. Um barulho infindável sai das bocas contentes que se passeiam à beira tejo. Sentei-me na esplanada da ribeira das naus, e recordei um dia, há muito tempo, em que uma personalidade portuguesa muito conhecida, daquelas que não passava despercebida em lado algum, ali se sentou, sozinho, sem segurança, apenas para ter alguns (inesperados) momentos de tranquilidade. Ninguém o reconheceu em português.
10. O que sucedeu? A gentrificação, definida, em termos simples, como a transformação dos bairros de baixo em alto valor. Causou uma revolução demográfica: a chegada de novos proprietários, de gente de posses, a bairros ou zonas mais pobres, mas com atrativos dantes desvalorizados – tornando-se ademais um fenómeno de moda, “trendy” -, aumentou o valor da propriedade, aumentou as rendas, expulsando os residentes mais pobres. As tascas desapareceram, substituídas por cadeias de comida rápida, lojas caras, escritórios. Toca fado gravado, comem-se especiarias portuguesas que os portugueses desconhecem. E se o fenómeno de moda é persistente, aos mais pobres seguem-se os remediados, depois a classe média, finalmente os abastados (mas não muito): todos são expulsos, para maior ou menor distância, conforme a conta bancária e os rendimentos.
11. Vão do bairro alto para campo de ourique, de campo de ourique para o restelo, do restelo para a amadora, da amadora para longe, para muito longe… bairro a bairro, cidade a cidade, a permanência dos locais tornou-se impossível. Parece impossível?
12. Dizem-me que os proprietários não sofrem da mesma forma os efeitos deste processo; mas a verdade é que eles, em cada fenómeno de bolha que precedeu (e seguiu) a gentrificação, não resistiram a vender. Ou, claro, a colocar os seus imóveis no mercado do arrendamento de curta duração. A saída dos nacionais, inevitável, acelerou.
13. Que fazer? A tuktukificação das cidades portuguesas começou há cerca de duas décadas, e alguns (apelidados de) alarmistas chamaram a atenção para o perigo daquilo a que se chamou gentrificação (de “gentry”, alta burguesia), usando a designação inventada pela britânica Ruth Glass na introdução a um livro de 1964 (London: aspects of change).
14. Apontaram-se soluções, recorrendo a exemplos de outros países e cidades (sim, a gentrificação é um fenómeno global): incrementar o arrendamento abordável por classes sociais de menores rendimentos, através da regulação de rendas; subsidiar a habitação (para rendas ou aquisição a preços aceitáveis), como em Paris; apoiar grupos locais, associações de moradores e outros para a criação de negócios sustentáveis; limitar o arrendamento temporário, devolvendo casas ao arrendamento tradicional (em São Francisco, em 2015, quase 2000 fogos estavam vazios, destinados ao arrendamento local); e outras soluções que privilegiem a vida local, os habitantes de sempre, o país que somos.
15. Não era fácil? Não foi. No meu sonho de daqui a 15 anos, a polémica das soluções (eu sei que o são), a incapacidade de sentir a cidade, as cidades portuguesas, como coisas vivas com gente dentro, transformou-nos a todos em borboletas extintas, gratas recordações de um tempo de antanho que acabou.
16. De dentro do vidro, em exposição, conservada em formol, Lisboa deixa-se contemplar por hordas de turistas míopes. E se eles não logram ver a alma da minha cidade bem-amada, é porque ela se mudou para os subúrbios.
PS. Que grande exagero! Quem pensou em fazer um comentário assim – ou mandar-me tomar um banho de mar para refrescar as ideias –, pode abster-se de o fazer. Eu sei que é um exagero. Será? Daqui a 15 anos falamos (a não ser que o governo, e as pessoas, e as instituições, e os intelectuais, e nós todos… sigamos o conselho referido acima).
, in Observador 25.07.2017

22.7.17

O ouro

" Em 1519, Hernan Cortés e os seus companheiros invadiram o México, até então um mundo isolado. Os Astecas, como se autodenominavam as pessoas que aí viviam, rapidamente perceberam que os forasteiros mostravam um extraordinário interesse por certo metal amarelo. De facto, pareciam nunca parar de falar nisso. O ouro não era conhecido dos nativos - era bonito e fácil de trabalhar, pelo que usavam-no para fazer jóias e estátuas e, ocasionalmente, usavam pó de ouro como meio de troca. No entanto, quando um asteca queria comprar alguma coisa, pagava, por norma, em bagos de cacau ou rolos de tecido. Como tal, a obsessão espanhola pelo ouro parecia inexplicável. O que tinha de tão importante aquele metal que não podia ser comido, bebido ou tecido, e que era demasiado macio para ser usado em ferramentas e armas? Quando os nativos questionaram Cortés quanto ao motivo de os espanhóis terem tal paixão pelo ouro, o conquistador respondeu: " Porque eu e os meus companheiros sofremos de uma doença do coração que só pode ser curada com ouro"."

in Sapiens, de Animais a Deuses de Yuval Noah Harari

17.7.17

As ditaduras do "policamente correcto" ...

(...) É um erro fatal acreditar que basta ignorar esta gente para não se ser afectado pelo seu zelo inquisitorial: o que comemos, bebemos, vestimos, as palavras que ensinamos aos nossos filhos e os brinquedos que damos aos nossos netos, tudo é pretexto para que imponham as suas teses e executem a sua engenharia social. Mais, são eles quem decide o que se pode ou não discutir. Durante anos trataram depreciativamente como dramas de faca e alguidar o que depois fizeram uma causa sua: a violência doméstica. Agora determinam que não se pode falar de questões de segurança: é populismo, dizem. Um dia farão dos assaltos às casas uma bandeira e logo toda a sociedade terá de ir a reboque do que de mais destrambelhado lhe ocorrer propor. No caso da família e do sexo foi precisamente isso que aconteceu: de início a luta pela igualdade entre homens e mulheres foi vista como um desperdício burguês porque a igualdade que contava e da qual decorriam todas as outras era a igualdade entre classes. Abstenho-me de escrever aqui o que os defensores da igualdade de classes então diziam sobre os homossexuais. Anos depois já nem de sexo se fala, vivemos numa espécie de ditadura andrógina ao serviço de uma entidade chamada género. Um dia esquecerão o género e outro tema os inebriará. Com igual espírito inquisitorial. (...)

excerto de um artigo de Helena Matos, 16/7/2017
http://observador.pt/opiniao/o-que-sera-feito-da-deputada-cigana/

Sines, anos 60, antes da construção do Porto


16.7.17

Lembrar antigas formas de comunicar



Quipo (do quíchua cusquenho Quipo ou KhipuIPA[ˈkʰipu], "") era um instrumento utilizado para comunicação, mas também como registro contábil e como registros mnemotécnicos entre os incas. Eram feitos da união de cordões que podem ser coloridos ou não, e poderia ter enfeites, como por exemplo ossos e penas, onde cada nó que se dava em cada cordão significava uma mensagem distinta. Cada cordão poderia ter um ou mais nós, ou nenhum nó, ou um nó na ponta, um nó na base, enfim, tudo era comunicado e transportado rapidamente ao imperador Inca no centro do império, Cuzco