30.3.14
Os escritores vêem mais fundo
"Mundo supostamente quer dizer uma coisa auto-suficiente. Mas nada é auto-suficiente. Tudo penetra em outra coisa."
Don Delillo, in Cosmopolis
O Síndrome do Burn-Out
“Oito em cada dez portugueses estão exaustos e querem mudar de emprego”: eis o título de uma notícia do PÚBLICO, na semana passada, que divulgava o resultado de um inquérito. Esta forma de exaustão é global, é uma epidemia, e foi baptizada em língua inglesa com um nome cuja tradução ainda não foi fixada com rigor nas línguas latinas: burn-out. Diz-se que o pai do conceito é Graham Greene, que o utilizou como título de um romance, de 1960, A Burnt-out Case (a ortografia do termo inglês tinha, então, um t final). O burn-out é uma doença da civilização e está exclusivamente ligado aos aspectos que caracterizam a organização contemporânea do trabalho. Distingue-se, pois, da depressão, que não precisa do contexto laboral para se revelar. Esta doença do bom cidadão trabalhador que sofre um “incêndio” metafórico (como sugere a palavra inglesa) apresenta os seguintes sintomas: fadiga até ao limite do esgotamento, ansiedade, incapacidade de controlar o stress, despersonalização e impotência. Esta doença do “too much” é reveladora de um demónio — o demónio do trabalho — que retira o mais precioso dos nossos bens: o tempo. E a palavra “demónio” justifica-se plenamente porque os estudiosos desta doença social dizem que ela tem um equivalente na acédia medieval — esse mal de que sofriam os monges na Idade Média e que os fazia perderem a fé no sistema divino. Por conseguinte, o burn-out é para as empresas o que a acédia foi para a Igreja. Em média, o tempo de trabalho é hoje superior ao que vigorava no século XIX. Todas as utopias que prometiam uma sociedade do lazer e viam no progresso tecnológico um meio que nos libertaria do trabalho foram desmentidas. Pior do que isso: a evolução e a multiplicação dos utensílios, em vez de serem factores de libertação, dilataram o tempo de trabalho e elevaram à máxima potência a lógica económica que se realiza na corrida pelo aumento da produção e do lucro. Evidentemente, isso só foi possível pondo em prática métodos de gestão que submetem, controlam, pressionam e induzem a uma competição que quebra solidariedades e cria delatores. Veja-se, aliás, como o apelo governamental à delação — algo que outrora seria considerado abjecto — começa a generalizar-se. O burn-out consiste em ultrapassar o limiar da resistência a uma adaptação violenta, coerciva, que, no limite, exige dos empregados que eles sejam “empreendedores” e, até, que os artistas se inclinem perante os códigos e as prerrogativas das indústrias culturais. Adaptação e flexibilidade são os nomes da actual ideologia do trabalho e da produção. A descoberta desta doença chamada burn-out deve-se muito a um médico americano (nascido na Alemanha em 1926), chamado Herbert J. Freudenberger, que a diagnosticou em si mesmo. Ao tratar de toxicómanos numa clínica de Nova Iorque, ele descobriu a certa altura que estava mais doente do que eles. Esta situação é a regra em que vivemos: os hospitais estão cheios de médicos doentes; as escolas estão cheias de professores que temem mais as aulas e a avaliação a que estão submetidos do que os alunos que ensinam e avaliam; os guardas das prisões estão tão encarcerados como os detidos que vigiam. Não há exterior ao tempo de trabalho. E, imersos em tudo isto, aqueles que dizem combater o capitalismo, ou pelo menos as suas lógicas mais nefastas, não fazem senão exaltar o trabalho e fixar as formas de vida que ele implica. O axioma de Carl Schmitt, segundo o qual o nosso inimigo se assemelha a nós, encontra aqui uma bela confirmação.
António Guerreiro (Ipsílon 21-03-2014 )
29.3.14
Aldina Duarte - Apenas o vento
Deu-me Deus tudo o que quis
Já nem sei de quanto fiz
Se foi Deus ou se fui eu
Deu-me alegrias e pranto
Mas esta voz com que canto
Foi o vento que me deu
Deu-me tudo, deu-me tanto
Mas esta voz com que canto
Foi o vento que me deu
Foi o rio e suas águas
Que me ensinou estas mágoas
A saudade, foi o mar
Mas meu canto, meu sustento
Foi o vento, foi com o vento
Que eu aprendi a cantar
Mas meu canto, meu sustento
Foi o vento, foi o vento
Que me ensinou a cantar
O vento passa por mim
Por isso é que eu canto assim
Mas, meu Deus, faça o que eu faça
Quer seja brisa ou levante
Que eu saiba, sempre que cante
Ser voz do vento que passa
Hei-de ser brisa e levante
Hei-de ser, sempre que cante,
Apenas o vento que passa.
Manuela de Freitas
LEVANTO À VISTA O QUE FOI A TERRA MAGNÍFICA
Levanto à vista o que foi a terra magnífica
e as estações mais bêbadas,
e estou tão leve porque não tenho nenhum segredo,
e tão oculto porque daqui a nada já posso dizer tudo,
daqui a uma pouca ciência saberei pensar
que algum pouco depois estarei morto,
e só de o pensar já nem respiro,
já quase nada toco,
já só vejo no fundo das mãos daquilo que fica escrito
que escrevi coisa nenhuma do mundo até ao esquecimento,
e movendo-me com as unhas movo os nome inúmeros
para dizer que mal nasci logo me deram por morto,
e não fui tido nem havido na razão do episódio
de um rosto ter passado por um espelho
e ter desaparecido,
portanto não me venha ninguém falar de nada
sei bastante do que sabem todos,
vejo a água a mover-se contra si mesma, tão marítima,
e acho até que é bonito,
cada qual morre do quanto alcança e não alcança,
e ninguém compreende,
a água quebra os dedos que escreveram até às pontas
e passa, a água fácil, sem retôrno,
porque nada tem retôrno e tudo é dificílimo
(não só o máximo mas também o mínimo)
Herberto Helder in Servidões, 2013
e as estações mais bêbadas,
e estou tão leve porque não tenho nenhum segredo,
e tão oculto porque daqui a nada já posso dizer tudo,
daqui a uma pouca ciência saberei pensar
que algum pouco depois estarei morto,
e só de o pensar já nem respiro,
já quase nada toco,
já só vejo no fundo das mãos daquilo que fica escrito
que escrevi coisa nenhuma do mundo até ao esquecimento,
e movendo-me com as unhas movo os nome inúmeros
para dizer que mal nasci logo me deram por morto,
e não fui tido nem havido na razão do episódio
de um rosto ter passado por um espelho
e ter desaparecido,
portanto não me venha ninguém falar de nada
sei bastante do que sabem todos,
vejo a água a mover-se contra si mesma, tão marítima,
e acho até que é bonito,
cada qual morre do quanto alcança e não alcança,
e ninguém compreende,
a água quebra os dedos que escreveram até às pontas
e passa, a água fácil, sem retôrno,
porque nada tem retôrno e tudo é dificílimo
(não só o máximo mas também o mínimo)
Herberto Helder in Servidões, 2013
27.3.14
Pensar é Destruir
O homem vulgar, por mais dura que lhe seja a vida, tem ao menos a felicidade de a não pensar. Viver a vida decorrentemente, exteriormente, como um gato ou um cão - assim fazem os homens gerais, e assim se deve viver a vida para que possa contar a satisfação do gato e do cão.
Pensar é destruir. O próprio processo do pensamento o indica para o mesmo pensamento, porque pensar é decompor. Se os homens soubessem meditar no mistério da vida, se soubessem sentir as mil complexidades que espiam a alma em cada pormenor da acção, não agiriam nunca, não viveriam até. Matar-se-iam assustados, como os que se suicidam para não ser guilhotinados no dia seguinte.
Fernando Pessoa, in 'O Livro do Desassossego'
24.3.14
20.3.14
Sobre o Mundo
O telescópio não alcança sequer a tua alma;
Imprecisão exacta de um instrumento instintivo.
Mas repara: não há instrumentos instintivos ou máquinas
Espontâneas.
Dois terços do amor estão na mulher, qualquer
que seja o casal. As evidências abrem falência
Em todas as áreas; com o machado homens robustos inventam
Ciências viris. Indispensáveis, de facto:
ciências meigas já existem em número
Excessivo. Monumentos que ocupam
Quilômetros quadrados são explicados por uma equação de
Dois centímetros. Repara: a engenharia é a invenção que engordou
As equações matemáticas. Atirou-as para o Mundo.
Vê as águas, a sabedoria discreta: ninguém
Constrói uma torre de observação no centro
Do mar. As águas não se bebem
Por inteiro, e nem toda a água é doméstica. o mar não tem
diminutivos. Uma onda não o é.
Nem o peixe.
Ciências que estudem seriamente o riso
Não existem; os cientistas
Colocam fórmulas em tabelas: têm gráficos complexos
que explicam a simplicidade
Do Mundo. Felizmente, fomos salvos
Pelo coração.
Certos órgãos ficaram reféns dos profetas
Antigos, e as noites passam-se melhor assim.
Indecisões desconcertantes permitem reinventar a
Monotonia: Trago-te uma monotonia surpreendente, alguém diz.
Animais mitológicos bebem água no nada,
E mesmo assim crescem; tem células resistentes.
Outros animais mais longos e espessos, mamíferos
De grande porte por exemplo, evaporam a 36°, reaparecendo
Não carnívora. O mundo muda,
Não pense que não. Nem os mamíferos são eternos.
No aeródromo, por exemplo, o poema atravanca o caminho
De descolagem
do avião de um
País pouco habituado a máquinas que subam mais
Alto que um banco de cozinha. O mundo
Não é injusto, mas também não é teu mordomo;
Avança e é só.
Gonçalo M. Tavares
Gonçalo M. Tavares
12.3.14
O SOL
Na infância o sol era um companheiro mais alto,
Que aparecera primeiro no campo de futebol, e aí, parado,
Guardava as costas da baliza e a erva que se tornava quente.
Como se o sol fosse de facto um instrumento de cozinha,
Aperfeiçoado, antigo, mas instrumento, matéria
Que os meninos agarravam com os dedos e cuja
Intensidade podiam por vontade própria regular.
Por exemplo: quando a luz era excessiva
Os dedos protegiam os olhos. Outras vezes
O corpo parecia a conclusão
Natural, instintiva, do calor que vinha de cima:
Recebíamos o sol como o ponto final recebe
Uma frase. Fazia mais sol quando eu tinha seis anos
(quem o fazia?) ou com o tempo e o tédio
Me fui distraindo?
Que aparecera primeiro no campo de futebol, e aí, parado,
Guardava as costas da baliza e a erva que se tornava quente.
Como se o sol fosse de facto um instrumento de cozinha,
Aperfeiçoado, antigo, mas instrumento, matéria
Que os meninos agarravam com os dedos e cuja
Intensidade podiam por vontade própria regular.
Por exemplo: quando a luz era excessiva
Os dedos protegiam os olhos. Outras vezes
O corpo parecia a conclusão
Natural, instintiva, do calor que vinha de cima:
Recebíamos o sol como o ponto final recebe
Uma frase. Fazia mais sol quando eu tinha seis anos
(quem o fazia?) ou com o tempo e o tédio
Me fui distraindo?
Gonçalo M. Tavares
11.3.14
10.3.14
Todo o Presente Espera pelo Passado para nos Comover
"Há vária gente que não gosta de evocar o passado. Uns por energia, disciplina prática e arremesso. Outros por ideologia progressista, visto que todo o passado é reaccionário. Outros por superficialidade ou secura de pau. Outros por falta de tempo, que todo ele é preciso para acudir ao presente e o que sobra, ao futuro. Como eu tenho pena deles todos. Porque o passado é a ternura e a legenda, o absoluto e a música, a irrealidade sem nada a acotovelar-nos. E um aceno doce de melancolia a fazer-nos sinais por sobre tudo. Tanta hora tenho gasto na simples evocação. Todo o presente espera pelo passado para nos comover. Há a filtragem do tempo para purificar esse presente até à fluidez impossível, à sublimação do encantamento, à incorruptível verdade que nele se oculta e é a sua única razão de ser. O presente é cheio de urgências mas ele que espere. Ha tanto que ser feliz na impossibilidade de ser feliz. Sobretudo quando ao futuro já se lhe toca com a mão. Há tanto que ter vida ainda, quando já se a não tem... "
Vergílio Ferreira in Conta-Corrente 5
9.3.14
Paris, antes de 1900 num tempo em que a vida parecia não ter ruído
Top of the rue Champlain in the 20th Arrondissement, 1877
Rue de Constantine before its demolition, 1866
View of a spire of Notre Dame, facing Ile St. Louis
IMAGENS @RETRONAUT
Os Amigos
Voltar ali onde
A verde rebentação da vaga
A espuma o nevoeiro o horizonte a praia
Guardam intacta a impetuosa
Juventude antiga -
Mas como sem os amigos
Sem a partilha o abraço a comunhão
Respirar o cheiro a alga da maresia
E colher a estrela do mar em minha mão
Sophia de Mello Breyner Andresen in Musa
A verde rebentação da vaga
A espuma o nevoeiro o horizonte a praia
Guardam intacta a impetuosa
Juventude antiga -
Mas como sem os amigos
Sem a partilha o abraço a comunhão
Respirar o cheiro a alga da maresia
E colher a estrela do mar em minha mão
Sophia de Mello Breyner Andresen in Musa
6.3.14
Acontecimento
"Um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo que veio antes e depois." Walter Benjamin
5.3.14
Sabedoria é não Entender
Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.
Clarice Lispector in A Descoberta do Mundo
Clarice Lispector in A Descoberta do Mundo
4.3.14
Ana Moura - 'Até ao Verão'
Deixei
na Primavera o cheiro a cravo
rosa e quimera que me encravam na memória que inventei
e andei
como quem espera
pelo fracasso
contra mazela em corpo de aço
nas ruelas do desdém
e a mim que importa
se é bem ou mal
se me falha a cor da chama a vida toda
é-me igual
vi sem volta
queira eu ou não
que me calhe a vida
insane e vossa em boda
até ao verão
deixei na primavera o som do encanto
riça promessa e sono santo
já não sei o que é dormir bem
e andei pelas favelas
do que eu faço
ora tropeço em erros crassos
ora esqueço onde errei
e a mim que importa
se é bem ou mal
se me falha a cor da chama a vida toda
é-me igual
vi sem volta
queira eu ou não
que me calhe a vida
insane e vossa em boda
até ao verão
e a mim que importa
se é bem ou mal
se me falha a cor da chama a vida toda
é-me igual
vi sem volta
queira eu ou não
que me calhe a vida
insane e vossa em boda
até ao verão
deixei na primavera o som do encanto
3.3.14
Alegria
"Sê alegre apenas depois de dares a volta à vida toda. E regressares então a uma flor, ao sol num muro, a um verme no chão. A profunda alegria não é a do começo mas a do fim."
Vergílio Ferreira
Vergílio Ferreira
1.3.14
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