“Oito em cada dez portugueses estão exaustos e querem mudar de emprego”: eis o título de uma notícia do PÚBLICO, na semana passada, que divulgava o resultado de um inquérito. Esta forma de exaustão é global, é uma epidemia, e foi baptizada em língua inglesa com um nome cuja tradução ainda não foi fixada com rigor nas línguas latinas: burn-out. Diz-se que o pai do conceito é Graham Greene, que o utilizou como título de um romance, de 1960, A Burnt-out Case (a ortografia do termo inglês tinha, então, um t final). O burn-out é uma doença da civilização e está exclusivamente ligado aos aspectos que caracterizam a organização contemporânea do trabalho. Distingue-se, pois, da depressão, que não precisa do contexto laboral para se revelar. Esta doença do bom cidadão trabalhador que sofre um “incêndio” metafórico (como sugere a palavra inglesa) apresenta os seguintes sintomas: fadiga até ao limite do esgotamento, ansiedade, incapacidade de controlar o stress, despersonalização e impotência. Esta doença do “too much” é reveladora de um demónio — o demónio do trabalho — que retira o mais precioso dos nossos bens: o tempo. E a palavra “demónio” justifica-se plenamente porque os estudiosos desta doença social dizem que ela tem um equivalente na acédia medieval — esse mal de que sofriam os monges na Idade Média e que os fazia perderem a fé no sistema divino. Por conseguinte, o burn-out é para as empresas o que a acédia foi para a Igreja. Em média, o tempo de trabalho é hoje superior ao que vigorava no século XIX. Todas as utopias que prometiam uma sociedade do lazer e viam no progresso tecnológico um meio que nos libertaria do trabalho foram desmentidas. Pior do que isso: a evolução e a multiplicação dos utensílios, em vez de serem factores de libertação, dilataram o tempo de trabalho e elevaram à máxima potência a lógica económica que se realiza na corrida pelo aumento da produção e do lucro. Evidentemente, isso só foi possível pondo em prática métodos de gestão que submetem, controlam, pressionam e induzem a uma competição que quebra solidariedades e cria delatores. Veja-se, aliás, como o apelo governamental à delação — algo que outrora seria considerado abjecto — começa a generalizar-se. O burn-out consiste em ultrapassar o limiar da resistência a uma adaptação violenta, coerciva, que, no limite, exige dos empregados que eles sejam “empreendedores” e, até, que os artistas se inclinem perante os códigos e as prerrogativas das indústrias culturais. Adaptação e flexibilidade são os nomes da actual ideologia do trabalho e da produção. A descoberta desta doença chamada burn-out deve-se muito a um médico americano (nascido na Alemanha em 1926), chamado Herbert J. Freudenberger, que a diagnosticou em si mesmo. Ao tratar de toxicómanos numa clínica de Nova Iorque, ele descobriu a certa altura que estava mais doente do que eles. Esta situação é a regra em que vivemos: os hospitais estão cheios de médicos doentes; as escolas estão cheias de professores que temem mais as aulas e a avaliação a que estão submetidos do que os alunos que ensinam e avaliam; os guardas das prisões estão tão encarcerados como os detidos que vigiam. Não há exterior ao tempo de trabalho. E, imersos em tudo isto, aqueles que dizem combater o capitalismo, ou pelo menos as suas lógicas mais nefastas, não fazem senão exaltar o trabalho e fixar as formas de vida que ele implica. O axioma de Carl Schmitt, segundo o qual o nosso inimigo se assemelha a nós, encontra aqui uma bela confirmação.
António Guerreiro (Ipsílon 21-03-2014 )
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