1.7.14

Luto por uma Novidade de Espírito

Procuro me manter isolada contra a agonia de viver dos outros, e essa agonia que lhes parece um jogo de vida e morte mascara uma outra realidade, tão extraordinária essa verdade que os outros cairiam de espanto diante dela, como num escândalo. Enquanto isso, ora estudam, ora trabalham, ora amam, ora crescem, ora se afanam, ora se alegram, ora se entristecem. A vida com letra maiúscula nada pode me dar porque vou confessar que também eu devo ter entrado por um beco sem saída como os outros. Porque noto em mim, não um bocado de fatos, e sim procuro quase tragicamente ser. É uma questão de sobrevivência assim como a de comer carne humana quando não há alimento. Luto não contra os que compram e vendem apartamentos e carros e procuram se casar e ter filhos mas luto com extrema ansiedade por uma novidade de espírito. Cada vez que me sinto quase um pouco iluminada vejo que estou tendo uma novidade de espírito. 
Minha vida é um reflexo deformado assim como se deforma num lago ondulante e instável o reflexo de um rosto. Imprecisão trémula. Como o que acontece com a água quando se mergulha a mão na água. Sou um palidíssimo reflexo de erudição. Minha receptividade se afina registrando sem parar as concepções de outros, refletindo no meu espelho os matizes sutis das distinções entre as coisas da vida. Eu que sou um resultado do verdadeiro milagre dos instintos. Eu sou um terreno pantanoso. Em mim nasce musgo molhado cobrindo pedras escorregadias. Pântano com seus sufocantes miasmas intoleravelmente doces. Pântano borbulhante. 

Clarice Lispector, in 'Um Sopro de Vida' 

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