irmãos humanos que depois de mim vivereis,
eu que fui obrigado a viver
dobrados os oitenta,
fazei por acabar mais cedo
vossos trabalhos cegos,
porque nestas idades já não
nunca,
nem leituras embrumadas,
nem crenças, nem política das
formas, nem poemas no futuro, nem
visitas extraterrestres de
mulheres
exorbitantemente
nuas, cruas, sexuais, luminosas,
só vê-las um pouco, sim, mas
vê-las também cansa,
é como trabalhar: stanca,
lavorare stanca,
queríamos tanto acreditar no
milagre isabelino do pão e das rosas,
e só tínhamos que perder a alma,
hoje talvez eu mesmo
acreditasse melhor, mas foi-se tudo,
enfim esses jogos gerais, ao
tempo que se esgotaram!
livros, je les aí lus tous, e
como de costume a carne é insondável,
estou mais pobre do que ao
comêço,
e o mundo é pequeníssimo,
dá-se-lhe corda, dá-se uma volta,
meia volta, e já era,
irmãos futuros do gênio de
Villon e do meu gênero baixo,
não peço piedade, apenas peço:
não me esqueceis só a mim,
esquecei a geração inteira,
inclitamente vergonhosa,
que em testamento vos deixou
esta montanha de merda:
o mundo como vontade e
representação que afinal é como era,
como há-de ser: alta,
alta montanha de merda — trepai
por ela acima até à vertigem,
merda eminentíssima:
daqui se vêem os mistérios, os
mesteres, os ministérios,
cada qual obrando a sua própria
magia:
merda que há-de medrar melhor
na memória do mundo
Herberto Helder in Servidões, 2013
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