Assim é que elas foram feitas (todas as coisas) —
sem nome.
Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé.
Insetos errados de cor caíam no mar.
A voz se estendeu na direção da boca.
Caranguejos apertavam mangues.
Vendo que havia na terra
Dependimentos demais
E tarefas muitas —
Os homens começaram a roer unhas.
Ficou certo pois não
Que as moscas iriam iluminar
O silêncio das coisas anônimas.
Porém, vendo o Homem
Que as moscas não davam conta de iluminar o
Silêncio das coisas anônimas —
Passaram essa tarefa para os poetas.
Manoel de Barros
26.12.16
15.12.16
14.12.16
Os que ficaram para trás...
http://brasil.elpais.com/brasil/2016/12/14/internacional/1481696489_212282.html
Para que servem as instituições, os observatórios, a diplomacia? Aqui tudo parece falhar. Aqui, parece que tudo tem que falhar. O que será da Síria e dos que ficaram para trás quando um dia já nada restar? Como actuará o terrorismo quando aqui tudo se silenciar?
11.12.16
O embaraço da arte contemporânea
A arte contemporânea
tornou-se um embaraço. São sintomas as múltiplas declarações de artistas
contemporâneos estabelecidos, que circulam internacionalmente, que amiudadas
vezes afirmam ver cada vez menos exposições de arte contemporânea, preferindo,
em Veneza, entrar nas igrejas para contemplar Tintorettos e, em Madrid, visitar
o Prado para aí admirar Goya ou Velázquez, em vez de ir à Feira do Arco.
À parte o snobismo
latente, este tipo de afirmações é também comum entre cineastas, poetas
compositores de música erudita, bem como entre muitos produtores dos
dispositivos artísticos que transportam algum sentido de permanência e
simultaneamente de imprevisibilidade. Não se trata de comentários nostálgicos
das artes do passado, mas da sensação de que “estas artes” são fugazes e a
“energia” que as artes da modernidade europeia continham terá desaparecido no
meio da autofagia da globalização tecno-financeira. E, contudo, a arte
contemporânea é inevitável que aconteça, mas o atributo “contemporâneo” como
qualificativo desta arte é cada vez mais gerador de desalentos e equívocos,
cuja grande responsabilidade está ligada ao facto de a sua matriz ser
euro-atlântica, mas o seu mercado financeiro ser global e determinante no
estabelecimento dos modos maioritários de produzir e consumir arte. E neste
aspecto a imediatez e a quantidade, como os atributos desta arte assim (mal)
classificada como contemporânea, aparecem sem essa energia e tempo e enigma dos
Tintorettos, Dreyers, Kantors, etc.
Acrescente-se então que os
sintomas acima referidos se transformaram em provas; provas de recepção
artística quando existe um sentimento muito presente de clausura, fechamento,
fim de festa, de que outrora a arte contemporânea se legitimava e assim
justificava um novo tempo descontínuo em relação à história que a precedia.
Ao reivindicar ser
exclusivamente contemporânea enquanto género, época, técnica, processo e
linguagem, rompendo com o passado, muitas vezes em guerra contra o moderno em
particular (a dança contemporânea, a Documenta de Kassel), a arte
contemporânea não promete nada. Ao contrário das vanguardas, que rompiam mas
prometiam outro futuro, outra medida, a arte contemporânea, por absoluta
necessidade de afirmação, enreda-se em si própria ou, para ser mais preciso, e
convocando a reflexão que António Guerreiro tem trazido a este debate, “o
sistema de arte contemporânea e as suas figuras e instituições (as galerias, os
museus, os centros de arte, as bienais)”. Foi esta eleição a uma categoria
estética e a um género artístico onde qualquer acto desde que realizado no
campo artístico é artístico — comer, assistir a vernissages, frequentar as
festas das bienais e das feiras de arte — que transformou a arte contemporânea
num campo onde tudo é semelhante, toda a actividade é homogénea, que nega a
existência de um campo exterior seja ele a crítica ou a estética e funciona em
pleno para o grande mercado. E aqui é fulcral referir Nicolas Borriaud, o
grande defensor desta arte contemporânea auto-referencial que se mesmizou e que
depende apenas de uma estética relacional e globalizante.
Este debate, que alguns
reclamam, não é uma réplica das querelas antigos-modernos, porque não supõe um
bloco ou uma estratégia de combate entre terrenos opostos, nem tão-pouco
promove a defesa dos Antigos para que sejam citados na pintura actual ou para
que se vista com a roupagem da actualidade uma peça de Sófocles. O debate visa
compreender se é possível outra abordagem à arte que distinga o contemporâneo
como categoria totalitária e açambarcadora, do contemporâneo como identificador
de uma pertença (é-se contemporâneo de alguma coisa ou de alguém) e ainda da
contemporaneidade como um conceito de vida sensitiva e intemporal. Para tanto é
necessário começar por admitir que o salto dado da modernidade para a arte
contemporânea não tem de ser pensado como um traçado em linha recta e, mais
ainda, que a modernidade europeia é tão-só uma das modernidades que existiram a
par de outras: asiáticas, indianas, americanas, africanas, cujo conhecimento
começamos a ter. E, a admitirmos isto, aceitamos essa abordagem tão convincente
quanto poética de Giorgio Agamben — como já antes Pasolini falara dos
pirilampos — ao afirmar que a contemporaneidade não é uma evidência, nem algo
que se torna visível na actualidade.
“Contemporâneo é aquele
que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o
escuro”, escreve o filósofo em “O que é ser contemporâneo” (2005)
No entanto, esta mesma
capacidade, não só de entender a contemporaneidade, mas de a viver, é possível
apenas quando recusamos a modernidade como uma exclusividade europeia, com a
sua epistemologia que nega outros saberes, os ditos “não-saberes”, designação
que abrange as formas e transmissão de conhecimento de tradições não europeias
ou europeias sem narrativas lineares da história de arte. Neste sentido, assim
como diz Eduardo Viveiros de Castro, as emoções podem surgir do confronto com
imagens do início da produção cultural dos homens, como as das grutas de
Lascaux ou do poema de Safo “... abrasas-me …” que podem ser arrebatadoras na
sua contemporaneidade.
Se há, pois, um sistema da
arte contemporânea autofágica, haverá ainda a possibilidade de uma
contemporaneidade tão pragmática quanto vivencial?
António Pinto Ribeiro, in O Público, 19.10.2016
5.12.16
Mudança de Idade
Para explicar
os excessos do meu irmão
a minha mãe dizia:
está na mudança de idade.
Na altura,
eu não tinha idade nenhuma
e o tempo era todo meu.
Despontavam borbulhas
no rosto do meu irmão,
eu morria de inveja
enquanto me perguntava:
em que idade a idade muda?
Que vida,
escondida de mim, vivia ele?
Em que adiantada estação
o tempo lhe vinha comer à mão?
Na espera de recompensa,
eu à lua pedia uma outra idade.
Respondiam-me batuques
mas vinham de longe,
de onde já não chega o luar.
Antes de dormirmos
a mãe vinha esticar os lençóis
que era um modo
de beijar o nosso sono.
Meu anjo, não durmas triste, pedia.
E eu não sabia
se era comigo que ela falava.
A tristeza, dizia,
é uma doença envergonhada.
Não aprendas a gostar dessa doença.
As suas palavras
soavam mais longe
que os tambores nocturnos.
O que invejas, falava a mãe, não é a idade.
É a vida
para além do sonho.
Idades mudaram-me,
calaram-se tambores,
na lua se anichou a materna voz.
E eu já nada reclamo.
Agora sei:
apenas o amor nos rouba o tempo.
E ainda hoje
estico os lençóis
antes de adormecer.
Mia Couto in Tradutor de Chuvas, 2011
os excessos do meu irmão
a minha mãe dizia:
está na mudança de idade.
Na altura,
eu não tinha idade nenhuma
e o tempo era todo meu.
Despontavam borbulhas
no rosto do meu irmão,
eu morria de inveja
enquanto me perguntava:
em que idade a idade muda?
Que vida,
escondida de mim, vivia ele?
Em que adiantada estação
o tempo lhe vinha comer à mão?
Na espera de recompensa,
eu à lua pedia uma outra idade.
Respondiam-me batuques
mas vinham de longe,
de onde já não chega o luar.
Antes de dormirmos
a mãe vinha esticar os lençóis
que era um modo
de beijar o nosso sono.
Meu anjo, não durmas triste, pedia.
E eu não sabia
se era comigo que ela falava.
A tristeza, dizia,
é uma doença envergonhada.
Não aprendas a gostar dessa doença.
As suas palavras
soavam mais longe
que os tambores nocturnos.
O que invejas, falava a mãe, não é a idade.
É a vida
para além do sonho.
Idades mudaram-me,
calaram-se tambores,
na lua se anichou a materna voz.
E eu já nada reclamo.
Agora sei:
apenas o amor nos rouba o tempo.
E ainda hoje
estico os lençóis
antes de adormecer.
Mia Couto in Tradutor de Chuvas, 2011
2.12.16
Os Poderosos
Somos poderosos, porque de súbito
invadimos o espaço público da opinião, da informação, da discussão, através da
Internet, das redes sociais, dos computadores, dos portáteis, dos tabletes e
dos telefones inteligentes.
É nosso esse espaço, pertence-nos, nele
somos todos iguais, ou seremos, quando o número de seguidores que temos – que
tenho – igualar o de, sei lá, um Cristiano Ronaldo, ou de um Justin Bieber, ou
de qualquer outro ser humano a quem chamamos “famoso”. Por enquanto
contentamo-nos com mil amigos (ou 654 ou 300 ou qualquer coisa assim), mas
sabemos que neste maravilhoso mundo novo podemos vir a ter dezenas, que digo,
centenas de milhares. Milhões de amigos?
Somos poderosos, porque a nossa página
no Facebook é só nossa e dos nossos amigos – os 654 ou 300 ou assim –, que
estão sempre de acordo connosco, nos dão força sem que sequer interesse o que
escrevemos, interessa é que ninguém nos contraria, e ninguém nos contraria
porque somos poderosos. Aliás, quem se atreva a contrariar-nos, a
contrariar-me, já sabe, será “desamigado”, porque no meu espaço mando eu, e o
meu espaço é meu, é privado, ninguém tem nada a ver com ele, e com as coisas
(quiçá) boçais que por lá escreva, que lá escrevamos, só a mim dizem respeito,
a mim e aos meus amigos, aqueles que eu não “desamiguei”, nem “desamigarei”.
O mundo mudou. Ninguém hoje ignora a
força da nossa opinião e os políticos sabem que agora quem manda somos nós, sou
eu, e a minha vontade anda por aí à solta, expressa-se em petições on-line
sobre todos os assuntos a propósito dos quais tenho opinião própria; e eu tenho
opinião própria sobre quase tudo. Publico-a em blogs patrocinados, coloco posts
no meu perfil, assino comentários verrinosos, por vezes com um nome diferente, um
alias qualquer, para que não me reconheçam; mas a opinião que emito fica
registada e nunca mais desaparecerá.
Somos poderosos porque, como disse há
dias em Portugal António Damásio, recusamos qualquer intermediação, temos
acesso a toda a informação necessária e não precisamos de ninguém para isso,
recusamos os peritos e os “expertos”, rejeitamos o saber dos doutores que sabem
menos do que nós porque nós sabemos tudo, está tudo na net, na wikipédia. Somos
poderosos “empoderados” da informação, que é poder, e temos o poder de dizer o
que quisermos e todos terão de nos ouvir, porque nós, eu, somos, sou, a voz do
homem comum, a voz da mulher comum e comigo falam todos os antigamente
desapossados (da informação) do mundo.
Esta não é já a era do aquário, esta é a
era em que as elites descem do seu pedestal e se misturam connosco, elas andam
no meio de nós, já não são altivas, já não valem nada, só têm o nome, a
posição, o dinheiro, a patine, a gravitas, e contudo são menos do que nós, os
comuns, elas andam no meio de nós de cerviz curvada, envergonhada, e já não
mandam nada.
Somos poderosos e temos poder, um
pequeno vídeo viral e o governo cai, e os banqueiros vacilam, e os diplomatas
somem-se, e os empresários vão presos, um soundbite bem esgalhado e os
políticos assustam-se (e convocam uma comissão de inquérito), um funcionário é
demitido, um agiota constituído arguido e uma reputação espoja-se na lama do
diz que disse. Sabem como é fácil pôr a circular um boato? Façam as contas a
mil amigos vezes 10 (partilhas) vezes 20, vezes 30 e ao quarto nível de
partilha já mais de 6 milhões repetem a história.
Quem resiste ao nosso poder? Um senhor
respeitável, das elites, publica um texto respeitável, e nós destruímo-lo nas
caixas de comentários, fazemos chiste com ele em posts no Face ou rápidas
alfinetadas no twitter, que dão a volta ao mundo e regressam com o senhor
respeitável devidamente desrespeitado – fazemo-lo só porque podemos e ele
pertence à classe dos que lêem e investigam e pensam e opinam.
Somos tão poderosos que nos damos ao
luxo de escrever ou falar com erros, quem quer saber da correcção gramatical ou
da harmonia sintática, vícios dos cultos e letrados a erradicar a todo o custo?
No meu mundo, que é todo o mundo, eu estou de mau humor sempre que quiser, não
sei onde vive essa gente armada em fina (e esperta) que despreza o espaço
público em que nós vivemos, nós os poderosos de agora, que mais depressa os
enterramos do que as luzes enterraram o antigo regime; no meu mundo, estou
sempre de mal humor para com os velhos decadentes digital-analfabetos.
Ninguém nos faz frente, porque nós temos
a força do número, viajamos à velocidade da luz e pensamos com a simplicidade
da vida. Ninguém nos confronta porque é perigoso fazer-nos frente: somos o
futuro, eles são o passado; somos muitos, não precisamos deles, e eles precisam
de nós; somos imunes à crítica, porque (no fundo) não a percebemos, mas eles
percebem muito bem o risco que correm, e o mal que a nossa crítica mal escrita
– e pejada de insultos, mais ou menos escatológicos – lhes pode fazer. E por
isso, eles, os pensadores, os escritores, os cultos, os plumitivos, os
publicistas, os competentes, os consultores, eles, os antigos donos do mundo,
vivem com medo do que possam ler nas redes, do que possa viajar à velocidade da
luz até aos antípodas e volta.
Eles sabem que neste maravilhoso mundo
novo que é o nosso, nada se perde, tudo se recorda. Os mais ínfimos dos seus
pecadilhos transformam-se aqui em gelatina gordurosa que se pega para sempre
aos seus cvs, que emporcalha em definitivo os seus perfis. Têm medo. E fazem-se
politicamente correctos, seja para dar razão à maior bacorada que nós digamos,
que eu escreva, que alguém poste como comentário no seu face ou no seu twitter,
seja para se auto-denunciar, denegrindo-se, na esperança quase vã de conquistar
mais um instante de sossego. Não que lhes sirva de muito, a sua espécie está
moribunda.
Sou poderoso. Rejeito a cultura e o
saber dos outros, porque tenho na ponta dos dedos a chave de todo o
conhecimento do mundo. Sou o bite, o megabite, o gigabite que domina a
civilização terrena no século XXI.
Mas não sou o mais poderoso; esse é o
que me controla, à distância e em silêncio.
PS. Está a acontecer. E a ordem antiga, feita de
eleições, encontros físicos, amizades reais e calor humano, cede perante a onda
avassaladora, tsunâmica, solitária, do maravilhoso mundo virtual. Em breve
seremos todos avatares uns dos outros.
Paulo de Almeida Sande, in Observador
1.12.16
Até as ruínas podemos amar neste lugar
Lembro-me muito bem do tal cantor basco
que costumava celebrar a chuva no verão
Não ligava quase nada para as conspirações
que recorrentemente se faziam ouvir
debaixo das arcadas noturnas da cidade
naquela época do intermezzo lunar
Foi já depois do fascismo, um pouco antes
da democracia enfaixada em magnólias
O cantor, as arcadas, o perfume e os disparos
me ensinaram que se deve aproveitar a época
de transição para destrinçar o brilho
As revoluções sempre foram o lugar certo
para a descoberta do sossego:
talvez porque nenhuma casa é segura
talvez porque nenhum corpo é seguro
ou talvez porque depois de encarar uma arma
finalmente possa ser possível entender
as múltiplas possibilidades de uma arma.
que costumava celebrar a chuva no verão
Não ligava quase nada para as conspirações
que recorrentemente se faziam ouvir
debaixo das arcadas noturnas da cidade
naquela época do intermezzo lunar
Foi já depois do fascismo, um pouco antes
da democracia enfaixada em magnólias
O cantor, as arcadas, o perfume e os disparos
me ensinaram que se deve aproveitar a época
de transição para destrinçar o brilho
As revoluções sempre foram o lugar certo
para a descoberta do sossego:
talvez porque nenhuma casa é segura
talvez porque nenhum corpo é seguro
ou talvez porque depois de encarar uma arma
finalmente possa ser possível entender
as múltiplas possibilidades de uma arma.
Matilde Campilho in Jóquei, 2014
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