Somos poderosos, porque de súbito
invadimos o espaço público da opinião, da informação, da discussão, através da
Internet, das redes sociais, dos computadores, dos portáteis, dos tabletes e
dos telefones inteligentes.
É nosso esse espaço, pertence-nos, nele
somos todos iguais, ou seremos, quando o número de seguidores que temos – que
tenho – igualar o de, sei lá, um Cristiano Ronaldo, ou de um Justin Bieber, ou
de qualquer outro ser humano a quem chamamos “famoso”. Por enquanto
contentamo-nos com mil amigos (ou 654 ou 300 ou qualquer coisa assim), mas
sabemos que neste maravilhoso mundo novo podemos vir a ter dezenas, que digo,
centenas de milhares. Milhões de amigos?
Somos poderosos, porque a nossa página
no Facebook é só nossa e dos nossos amigos – os 654 ou 300 ou assim –, que
estão sempre de acordo connosco, nos dão força sem que sequer interesse o que
escrevemos, interessa é que ninguém nos contraria, e ninguém nos contraria
porque somos poderosos. Aliás, quem se atreva a contrariar-nos, a
contrariar-me, já sabe, será “desamigado”, porque no meu espaço mando eu, e o
meu espaço é meu, é privado, ninguém tem nada a ver com ele, e com as coisas
(quiçá) boçais que por lá escreva, que lá escrevamos, só a mim dizem respeito,
a mim e aos meus amigos, aqueles que eu não “desamiguei”, nem “desamigarei”.
O mundo mudou. Ninguém hoje ignora a
força da nossa opinião e os políticos sabem que agora quem manda somos nós, sou
eu, e a minha vontade anda por aí à solta, expressa-se em petições on-line
sobre todos os assuntos a propósito dos quais tenho opinião própria; e eu tenho
opinião própria sobre quase tudo. Publico-a em blogs patrocinados, coloco posts
no meu perfil, assino comentários verrinosos, por vezes com um nome diferente, um
alias qualquer, para que não me reconheçam; mas a opinião que emito fica
registada e nunca mais desaparecerá.
Somos poderosos porque, como disse há
dias em Portugal António Damásio, recusamos qualquer intermediação, temos
acesso a toda a informação necessária e não precisamos de ninguém para isso,
recusamos os peritos e os “expertos”, rejeitamos o saber dos doutores que sabem
menos do que nós porque nós sabemos tudo, está tudo na net, na wikipédia. Somos
poderosos “empoderados” da informação, que é poder, e temos o poder de dizer o
que quisermos e todos terão de nos ouvir, porque nós, eu, somos, sou, a voz do
homem comum, a voz da mulher comum e comigo falam todos os antigamente
desapossados (da informação) do mundo.
Esta não é já a era do aquário, esta é a
era em que as elites descem do seu pedestal e se misturam connosco, elas andam
no meio de nós, já não são altivas, já não valem nada, só têm o nome, a
posição, o dinheiro, a patine, a gravitas, e contudo são menos do que nós, os
comuns, elas andam no meio de nós de cerviz curvada, envergonhada, e já não
mandam nada.
Somos poderosos e temos poder, um
pequeno vídeo viral e o governo cai, e os banqueiros vacilam, e os diplomatas
somem-se, e os empresários vão presos, um soundbite bem esgalhado e os
políticos assustam-se (e convocam uma comissão de inquérito), um funcionário é
demitido, um agiota constituído arguido e uma reputação espoja-se na lama do
diz que disse. Sabem como é fácil pôr a circular um boato? Façam as contas a
mil amigos vezes 10 (partilhas) vezes 20, vezes 30 e ao quarto nível de
partilha já mais de 6 milhões repetem a história.
Quem resiste ao nosso poder? Um senhor
respeitável, das elites, publica um texto respeitável, e nós destruímo-lo nas
caixas de comentários, fazemos chiste com ele em posts no Face ou rápidas
alfinetadas no twitter, que dão a volta ao mundo e regressam com o senhor
respeitável devidamente desrespeitado – fazemo-lo só porque podemos e ele
pertence à classe dos que lêem e investigam e pensam e opinam.
Somos tão poderosos que nos damos ao
luxo de escrever ou falar com erros, quem quer saber da correcção gramatical ou
da harmonia sintática, vícios dos cultos e letrados a erradicar a todo o custo?
No meu mundo, que é todo o mundo, eu estou de mau humor sempre que quiser, não
sei onde vive essa gente armada em fina (e esperta) que despreza o espaço
público em que nós vivemos, nós os poderosos de agora, que mais depressa os
enterramos do que as luzes enterraram o antigo regime; no meu mundo, estou
sempre de mal humor para com os velhos decadentes digital-analfabetos.
Ninguém nos faz frente, porque nós temos
a força do número, viajamos à velocidade da luz e pensamos com a simplicidade
da vida. Ninguém nos confronta porque é perigoso fazer-nos frente: somos o
futuro, eles são o passado; somos muitos, não precisamos deles, e eles precisam
de nós; somos imunes à crítica, porque (no fundo) não a percebemos, mas eles
percebem muito bem o risco que correm, e o mal que a nossa crítica mal escrita
– e pejada de insultos, mais ou menos escatológicos – lhes pode fazer. E por
isso, eles, os pensadores, os escritores, os cultos, os plumitivos, os
publicistas, os competentes, os consultores, eles, os antigos donos do mundo,
vivem com medo do que possam ler nas redes, do que possa viajar à velocidade da
luz até aos antípodas e volta.
Eles sabem que neste maravilhoso mundo
novo que é o nosso, nada se perde, tudo se recorda. Os mais ínfimos dos seus
pecadilhos transformam-se aqui em gelatina gordurosa que se pega para sempre
aos seus cvs, que emporcalha em definitivo os seus perfis. Têm medo. E fazem-se
politicamente correctos, seja para dar razão à maior bacorada que nós digamos,
que eu escreva, que alguém poste como comentário no seu face ou no seu twitter,
seja para se auto-denunciar, denegrindo-se, na esperança quase vã de conquistar
mais um instante de sossego. Não que lhes sirva de muito, a sua espécie está
moribunda.
Sou poderoso. Rejeito a cultura e o
saber dos outros, porque tenho na ponta dos dedos a chave de todo o
conhecimento do mundo. Sou o bite, o megabite, o gigabite que domina a
civilização terrena no século XXI.
Mas não sou o mais poderoso; esse é o
que me controla, à distância e em silêncio.
PS. Está a acontecer. E a ordem antiga, feita de
eleições, encontros físicos, amizades reais e calor humano, cede perante a onda
avassaladora, tsunâmica, solitária, do maravilhoso mundo virtual. Em breve
seremos todos avatares uns dos outros.
o excesso de ruído provoca a surdez...
ResponderEliminare o lixo torna-se irrespirável.
por isso, não concordo que "sejamos (assim) tão poderosos".
o perigoso é acreditar que o virtual é real.