A arte contemporânea
tornou-se um embaraço. São sintomas as múltiplas declarações de artistas
contemporâneos estabelecidos, que circulam internacionalmente, que amiudadas
vezes afirmam ver cada vez menos exposições de arte contemporânea, preferindo,
em Veneza, entrar nas igrejas para contemplar Tintorettos e, em Madrid, visitar
o Prado para aí admirar Goya ou Velázquez, em vez de ir à Feira do Arco.
À parte o snobismo
latente, este tipo de afirmações é também comum entre cineastas, poetas
compositores de música erudita, bem como entre muitos produtores dos
dispositivos artísticos que transportam algum sentido de permanência e
simultaneamente de imprevisibilidade. Não se trata de comentários nostálgicos
das artes do passado, mas da sensação de que “estas artes” são fugazes e a
“energia” que as artes da modernidade europeia continham terá desaparecido no
meio da autofagia da globalização tecno-financeira. E, contudo, a arte
contemporânea é inevitável que aconteça, mas o atributo “contemporâneo” como
qualificativo desta arte é cada vez mais gerador de desalentos e equívocos,
cuja grande responsabilidade está ligada ao facto de a sua matriz ser
euro-atlântica, mas o seu mercado financeiro ser global e determinante no
estabelecimento dos modos maioritários de produzir e consumir arte. E neste
aspecto a imediatez e a quantidade, como os atributos desta arte assim (mal)
classificada como contemporânea, aparecem sem essa energia e tempo e enigma dos
Tintorettos, Dreyers, Kantors, etc.
Acrescente-se então que os
sintomas acima referidos se transformaram em provas; provas de recepção
artística quando existe um sentimento muito presente de clausura, fechamento,
fim de festa, de que outrora a arte contemporânea se legitimava e assim
justificava um novo tempo descontínuo em relação à história que a precedia.
Ao reivindicar ser
exclusivamente contemporânea enquanto género, época, técnica, processo e
linguagem, rompendo com o passado, muitas vezes em guerra contra o moderno em
particular (a dança contemporânea, a Documenta de Kassel), a arte
contemporânea não promete nada. Ao contrário das vanguardas, que rompiam mas
prometiam outro futuro, outra medida, a arte contemporânea, por absoluta
necessidade de afirmação, enreda-se em si própria ou, para ser mais preciso, e
convocando a reflexão que António Guerreiro tem trazido a este debate, “o
sistema de arte contemporânea e as suas figuras e instituições (as galerias, os
museus, os centros de arte, as bienais)”. Foi esta eleição a uma categoria
estética e a um género artístico onde qualquer acto desde que realizado no
campo artístico é artístico — comer, assistir a vernissages, frequentar as
festas das bienais e das feiras de arte — que transformou a arte contemporânea
num campo onde tudo é semelhante, toda a actividade é homogénea, que nega a
existência de um campo exterior seja ele a crítica ou a estética e funciona em
pleno para o grande mercado. E aqui é fulcral referir Nicolas Borriaud, o
grande defensor desta arte contemporânea auto-referencial que se mesmizou e que
depende apenas de uma estética relacional e globalizante.
Este debate, que alguns
reclamam, não é uma réplica das querelas antigos-modernos, porque não supõe um
bloco ou uma estratégia de combate entre terrenos opostos, nem tão-pouco
promove a defesa dos Antigos para que sejam citados na pintura actual ou para
que se vista com a roupagem da actualidade uma peça de Sófocles. O debate visa
compreender se é possível outra abordagem à arte que distinga o contemporâneo
como categoria totalitária e açambarcadora, do contemporâneo como identificador
de uma pertença (é-se contemporâneo de alguma coisa ou de alguém) e ainda da
contemporaneidade como um conceito de vida sensitiva e intemporal. Para tanto é
necessário começar por admitir que o salto dado da modernidade para a arte
contemporânea não tem de ser pensado como um traçado em linha recta e, mais
ainda, que a modernidade europeia é tão-só uma das modernidades que existiram a
par de outras: asiáticas, indianas, americanas, africanas, cujo conhecimento
começamos a ter. E, a admitirmos isto, aceitamos essa abordagem tão convincente
quanto poética de Giorgio Agamben — como já antes Pasolini falara dos
pirilampos — ao afirmar que a contemporaneidade não é uma evidência, nem algo
que se torna visível na actualidade.
“Contemporâneo é aquele
que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o
escuro”, escreve o filósofo em “O que é ser contemporâneo” (2005)
No entanto, esta mesma
capacidade, não só de entender a contemporaneidade, mas de a viver, é possível
apenas quando recusamos a modernidade como uma exclusividade europeia, com a
sua epistemologia que nega outros saberes, os ditos “não-saberes”, designação
que abrange as formas e transmissão de conhecimento de tradições não europeias
ou europeias sem narrativas lineares da história de arte. Neste sentido, assim
como diz Eduardo Viveiros de Castro, as emoções podem surgir do confronto com
imagens do início da produção cultural dos homens, como as das grutas de
Lascaux ou do poema de Safo “... abrasas-me …” que podem ser arrebatadoras na
sua contemporaneidade.
Se há, pois, um sistema da
arte contemporânea autofágica, haverá ainda a possibilidade de uma
contemporaneidade tão pragmática quanto vivencial?
António Pinto Ribeiro, in O Público, 19.10.2016
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