Entre
os temas tabu dos nossos dias está a ignorância. Parece que falar da ignorância
coloca logo quem o faz numa situação de arrogância intelectual, o que inibe
muita gente de a nomear. Mas não há muita razão para se enfiar essa carapuça,
tanto mais que o problema é enorme e está agravar-se e a assumir novas formas,
socialmente agressivas. Acompanha outro tipo de fenómenos como o populismo, a
chamada “pós-verdade”, a circulação indiferenciada de notícias falsas, e, o que
é mais grave, a indiferença sobre a sua verificação. Não explica, nem é a causa
de nenhum destes fenómenos, mas é sua parente próxima e faz parte da mesma
família. É, repetindo uma fórmula que já usei, como se de repente se deixasse
de ir ao médico, e se passasse a ir ao curandeiro.
Uso
aqui uma noção utilitária de ignorância que pode ser simplista, mas que serve.
Ser ignorante é não ter os instrumentos para se mover no mundo que nos rodeia,
ser sujeito mais do que ser actor, não conseguir atingir o empowerment que é suposto se poder ter para se actuar conforme as
circunstâncias, de modo a crescer, ser capaz, viver uma vida qualificada e
tirar dela uma experiência enriquecedora, controlando-se a si próprio tanto
quanto é possível, e não menosprezando as condições para se ser feliz,
“habitualmente” feliz. Isto é muito Dale Carnegie, mas serve, não é preciso
complicar à partida.
Percebe-se,
usando esta definição, que a ignorância pode ser descrita como a pobreza, cujos
efeitos e condições de superação são exactamente do mesmo tipo. A ignorância é
uma forma de pobreza e o seu crescimento acentua a pobreza em geral e, mais do
que a pobreza, a exclusão e a diferenciação social. É até um dos mecanismos
mais eficazes para aumentar a distância entre pobres e ricos, e para estabilizar
um status quo nos pobres, que, como a droga, tem efeitos de
satisfação instantânea, de paraíso artificial, ou, se se quiser de “ópio do
povo”.
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Faço
uma distinção entre aquilo a que chamo “a antiga ignorância” e “a nova”. A
antiga tem muito que ver com a baixa qualificação profissional, com a
insuficiente escolaridade, com a má qualidade de muitas escolas, sem meios, sem
professores preparados, com o analfabetismo funcional. É um factor do nosso
atraso e ajuda a potenciar os efeitos perversos da nova ignorância, mas não a
explica por si só.
Contentamo-nos
muito com a diminuição estatística da antiga ignorância e isso em Portugal é
mais do que compreensível. O sucesso da escola, e da escolarização, o ensino
para adultos, as melhorias verificadas em disciplinas como Português e
Matemática são instrumentos fundamentais, entre outras coisas, para a
mobilidade social, mas, mesmo que tenhamos, como agora se diz, as gerações mais
qualificadas, estamos cegos quanto ao crescimento da nova ignorância, não só em
aliança e em tandem com a antiga, mas assumindo novas formas e efeitos. O facto
de haver um modismo tecnológico e se confundir a utilização de gadgets, aliás bastante rudimentar, com um novo saber, que
implica novas competências, esconde essa regra básica de que as literacias para
os usar vêm do sistema escolar a montante e a possibilidade de os usar para uma
melhoria social só existe a jusante se acompanhar uma evolução social que não
se está a verificar. Mais do que uma evolução, há uma involução.
A
antiga ignorância assentava numa carência, numa falta, a nova assenta numa
ilusão. É por isso que a antiga ignorância era vista como um problema da
sociedade e a nova é vista como um “progresso”, ou como uma tendência contra a
qual é inútil lutar. Isso tem muito que ver com uma ideologia corrente face às
novas tecnologias, em particular aquelas que têm imediatos efeitos sociais como
os telemóveis, as redes sociais, e certos modos de usar os videojogos, a
realidade virtual e mesmo o computador e a televisão.
O
primeiro efeito nefasto dessa ideologia é a crença de que são as novas
tecnologias que estão a mudar a sociedade. É o contrário. É a mudança da
sociedade que potencia o uso de determinadas tecnologias, que depois acentuam
os efeitos de partida. Muitas tecnologias de “contacto” — como programas de
“presentificação”, que fazem as pessoas olharem para os seus telemóveis
centenas de vezes por dia, e os adolescentes, na vanguarda desta nova
ignorância juntamente com os seus jovens pais adultos, passarem o dia a
enviarem mensagens sem qualquer conteúdo — só têm sucesso porque se deu uma
deterioração acentuada das formas de sociabilidade interpessoais, substituídas
por um Ersatz de presença e companhia tão efémero que tem de estar
sempre a ser repetido. Sociedades sem relações humanas de vizinhança, de
companhia e amizade, sem interacções de grupo, sem movimentos colectivos de
interesse comum dependem de formas artificiais e, insisto, pobres, de
relacionamento que se tornam adictivas como a droga. Não há maior punição para
um adolescente do que se lhe tirar o telemóvel, e alguns dos conflitos mais
graves que ocorrem hoje nas escolas estão ligados ao telemóvel que funciona
como uma linha de vida.
Nada
é mais significativo e deprimente do que ver numa entrada de uma escola, ou num
restaurante popular, ou na rua, pessoas que estão juntas, mas que quase não se
falam, e estão atentas ao telemóvel, mandando mensagens, enviando fotografias,
vendo a sua página de Facebook, centenas de vezes por dia. Que vida pode sobrar?
Ainda
há-de alguém convencer-me que este comportamento lá por usar tecnologias
modernas representa uma vantagem e não uma patologia. Faz parte de sociedades
em que deixou de haver silêncio, tempo para pensar, curiosidade de olhar para
fora, gosto por actividades lentas como ler, ou ver com olhos de ver. E se
olharmos para os produtos de tanta página de Facebook, de tanta mensagem, de
tanto comentário não editado, de tanta “opinião” sobre tudo e todos, escritas
num português macarrónico e cheio de erros, encontramos fenómenos de
acantonamento, de tribalização, de radicalização, de cobardia anónima, de
ajustes de contas, de bullying num mundo que tem de ser sempre excitado, assertivo e
taxativo. Um dos maiores riscos para o mundo é ter um presidente dos EUA que
governa pelo Twitter como um adolescente, com mensagens curtas, sem
argumentação, que, para terem efeito, têm de ser excessivas e taxativas.
José Pacheco Pereira, 31.12.2016 Público
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