30.3.14

Os escritores vêem mais fundo


"Mundo supostamente quer dizer uma coisa auto-suficiente. Mas nada é auto-suficiente. Tudo penetra em outra coisa."

Don Delillo, in Cosmopolis

O Síndrome do Burn-Out



29.3.14

Aldina Duarte - Apenas o vento



Deu-me Deus tudo o que quis
Já nem sei de quanto fiz
Se foi Deus ou se fui eu
Deu-me alegrias e pranto
Mas esta voz com que canto
Foi o vento que me deu

Deu-me tudo, deu-me tanto
Mas esta voz com que canto
Foi o vento que me deu

Foi o rio e suas águas
Que me ensinou estas mágoas
A saudade, foi o mar
Mas meu canto, meu sustento
Foi o vento, foi com o vento
Que eu aprendi a cantar

Mas meu canto, meu sustento
Foi o vento, foi o vento
Que me ensinou a cantar

O vento passa por mim
Por isso é que eu canto assim
Mas, meu Deus, faça o que eu faça
Quer seja brisa ou levante
Que eu saiba, sempre que cante
Ser voz do vento que passa

Hei-de ser brisa e levante
Hei-de ser, sempre que cante,
Apenas o vento que passa.

Manuela de Freitas

LEVANTO À VISTA O QUE FOI A TERRA MAGNÍFICA

Levanto à vista o que foi a terra magnífica
e as estações mais bêbadas,
e estou tão leve porque não tenho nenhum segredo,
e tão oculto porque daqui a nada já posso dizer tudo,
daqui a uma pouca ciência saberei pensar
que algum pouco depois estarei morto,
e só de o pensar já nem respiro,
já quase nada toco,
já só vejo no fundo das mãos daquilo que fica escrito
que escrevi coisa nenhuma do mundo até ao esquecimento,
e movendo-me com as unhas movo os nome inúmeros
para dizer que mal nasci logo me deram por morto,
e não fui tido nem havido na razão do episódio
de um rosto ter passado por um espelho
e ter desaparecido,
portanto não me venha ninguém falar de nada
sei bastante do que sabem todos,
vejo a água a mover-se contra si mesma, tão marítima,
e acho até que é bonito,
cada qual morre do quanto alcança e não alcança,
e ninguém compreende,
a água quebra os dedos que escreveram até às pontas
e passa, a água fácil, sem retôrno,
porque nada tem retôrno e tudo é dificílimo
(não só o máximo mas também o mínimo)

Herberto Helder in Servidões, 2013

O encontro - Rodrigo Leão

27.3.14

Pensar é Destruir


O homem vulgar, por mais dura que lhe seja a vida, tem ao menos a felicidade de a não pensar. Viver a vida decorrentemente, exteriormente, como um gato ou um cão - assim fazem os homens gerais, e assim se deve viver a vida para que possa contar a satisfação do gato e do cão. 
Pensar é destruir. O próprio processo do pensamento o indica para o mesmo pensamento, porque pensar é decompor. Se os homens soubessem meditar no mistério da vida, se soubessem sentir as mil complexidades que espiam a alma em cada pormenor da acção, não agiriam nunca, não viveriam até. Matar-se-iam assustados, como os que se suicidam para não ser guilhotinados no dia seguinte. 

Fernando Pessoa, in 'O Livro do Desassossego'

24.3.14

"Última Cena"

 Jose Manuel Ballester

20.3.14

Sobre o Mundo


O telescópio não alcança sequer a tua alma;
Imprecisão exacta de um instrumento instintivo.
Mas repara: não há instrumentos instintivos ou máquinas
Espontâneas.
Dois terços do amor estão na mulher, qualquer
que seja o casal. As evidências abrem falência
Em todas as áreas; com o machado homens robustos inventam
Ciências viris. Indispensáveis, de facto:
ciências meigas já existem em número
Excessivo. Monumentos que ocupam
Quilômetros quadrados são explicados por uma equação de
Dois centímetros. Repara: a engenharia é a invenção que engordou
As equações matemáticas. Atirou-as para o Mundo.
Vê as águas, a sabedoria discreta: ninguém
Constrói uma torre de observação no centro
Do mar. As águas não se bebem
Por inteiro, e nem toda a água é doméstica. o mar não tem
diminutivos. Uma onda não o é.
Nem o peixe.
Ciências que estudem seriamente o riso
Não existem; os cientistas
Colocam fórmulas em tabelas: têm gráficos complexos
que explicam a simplicidade
Do Mundo. Felizmente, fomos salvos
Pelo coração.
Certos órgãos ficaram reféns dos profetas
Antigos, e as noites passam-se melhor assim.
Indecisões desconcertantes permitem reinventar a
Monotonia: Trago-te uma monotonia surpreendente, alguém diz.
Animais mitológicos bebem água no nada,
E mesmo assim crescem; tem células resistentes.
Outros animais mais longos e espessos, mamíferos
De grande porte por exemplo, evaporam a 36°, reaparecendo
Não carnívora. O mundo muda,
Não pense que não. Nem os mamíferos são eternos.
No aeródromo, por exemplo, o poema atravanca o caminho
De descolagem
do avião de um
País pouco habituado a máquinas que subam mais
Alto que um banco de cozinha. O mundo
Não é injusto, mas também não é teu mordomo;
Avança e é só.

Gonçalo M. Tavares

Picasso, a cabeça, o escuro e a luz

Robert Capa, Pablo Picasso in his studio at the Rue des Grands-Augustins, Paris, date unknown

12.3.14

O SOL

Na infância o sol era um companheiro mais alto,
Que aparecera primeiro no campo de futebol, e aí, parado,
Guardava as costas da baliza e a erva que se tornava quente.
Como se o sol fosse de facto um instrumento de cozinha,
Aperfeiçoado, antigo, mas instrumento, matéria
Que os meninos agarravam com os dedos e cuja
Intensidade podiam por vontade própria regular. 
Por exemplo: quando a luz era excessiva 
Os dedos protegiam os olhos. Outras vezes 
O corpo parecia a conclusão
Natural, instintiva, do calor que vinha de cima:
Recebíamos o sol como o ponto final recebe
Uma frase. Fazia mais sol quando eu tinha seis anos
(quem o fazia?) ou com o tempo e o tédio
Me fui distraindo?

Gonçalo M. Tavares

10.3.14

Todo o Presente Espera pelo Passado para nos Comover


"Há vária gente que não gosta de evocar o passado. Uns por energia, disciplina prática e arremesso. Outros por ideologia progressista, visto que todo o passado é reaccionário. Outros por superficialidade ou secura de pau. Outros por falta de tempo, que todo ele é preciso para acudir ao presente e o que sobra, ao futuro. Como eu tenho pena deles todos. Porque o passado é a ternura e a legenda, o absoluto e a música, a irrealidade sem nada a acotovelar-nos. E um aceno doce de melancolia a fazer-nos sinais por sobre tudo. Tanta hora tenho gasto na simples evocação. Todo o presente espera pelo passado para nos comover. Há a filtragem do tempo para purificar esse presente até à fluidez impossível, à sublimação do encantamento, à incorruptível verdade que nele se oculta e é a sua única razão de ser. O presente é cheio de urgências mas ele que espere. Ha tanto que ser feliz na impossibilidade de ser feliz. Sobretudo quando ao futuro já se lhe toca com a mão. Há tanto que ter vida ainda, quando já se a não tem... "

Vergílio Ferreira in Conta-Corrente 5

9.3.14

Paris, antes de 1900 num tempo em que a vida parecia não ter ruído

Top of the rue Champlain in the 20th Arrondissement, 1877
Rue de Constantine before its demolition, 1866
View of a spire of Notre Dame, facing Ile St. Louis
IMAGENS @RETRONAUT

Os Amigos

Voltar ali onde 
A verde rebentação da vaga 
A espuma o nevoeiro o horizonte a praia 
Guardam intacta a impetuosa 
Juventude antiga - 
Mas como sem os amigos 
Sem a partilha o abraço a comunhão 
Respirar o cheiro a alga da maresia 
E colher a estrela do mar em minha mão 

Sophia de Mello Breyner Andresen in Musa

6.3.14

Acontecimento

"Um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo que veio antes e depois." Walter Benjamin

5.3.14

Os dias bons


Sabedoria é não Entender

Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo. 

Clarice Lispector in A Descoberta do Mundo

4.3.14

Ana Moura - 'Até ao Verão'


Deixei 
na Primavera o cheiro a cravo
rosa e quimera que me encravam na memória que inventei

e andei
como quem espera
pelo fracasso
contra mazela em corpo de aço
nas ruelas do desdém

e a mim que importa
se é bem ou mal
se me falha a cor da chama a vida toda
é-me igual

vi sem volta
queira eu ou não
que me calhe a vida
insane e vossa em boda
até ao verão

deixei na primavera o som do encanto
riça promessa e sono santo
já não sei o que é dormir bem

e andei pelas favelas
do que eu faço
ora tropeço em erros crassos
ora esqueço onde errei

e a mim que importa
se é bem ou mal
se me falha a cor da chama a vida toda
é-me igual

vi sem volta
queira eu ou não
que me calhe a vida
 insane e vossa em boda
até ao verão

e a mim que importa
se é bem ou mal
se me falha a cor da chama a vida toda
é-me igual

vi sem volta
queira eu ou não
que me calhe a vida
insane e vossa em boda
até ao verão

deixei na primavera o som do encanto

a primeira luz da manhã

Dawn in Nakanoshima

3.3.14

um livro


Alegria

"Sê alegre apenas depois de dares a volta à vida toda. E regressares então a uma flor, ao sol num muro, a um verme no chão. A profunda alegria não é a do começo mas a do fim."

Vergílio Ferreira