30.1.16

PERPLEXIDADE

A criança estava perplexa. Tinha os olhos maiores e mais brilhantes do que nos outros dias, e um risquinho novo, vertical, entre as sobrancelhas breves. «Não percebo», disse.
Em frente da televisão, os pais. Olhar para o pequeno écran era a maneira de olharem um para o outro. Mas nessa noite, nem isso. Ela fazia tricô, ele tinha o jornal aberto. Mas tricô e jornal eram alibis. Nessa noite recusavam mesmo o écran onde os seus olhares se confundiam. A menina, porém, ainda não tinha idade para fingimentos tão adultos e subtis, e, sentada no chão, olhava de frente, com toda a sua alma. E então o olhar grande a rugazinha e aquilo de não perceber. «Não percebo», repetiu.
«O que é que não percebes?» disse a mãe por dizer, no fim da carreira, aproveitando a deixa para rasgar o silêncio ruidoso em que alguém espancava alguém com requintes de malvadez.
«Isto, por exemplo.»
«Isto o quê»
«Sei lá. A vida», disse a criança com seriedade.
O pai dobrou o jornal, quis saber qual era o problema que preocupava tanto a filha de oito anos, tão subitamente.
Como de costume preparava-se para lhe explicar todos os problemas, os de aritmética e os outros.
«Tudo o que nos dizem para não fazermos é mentira.»
«Não percebo.»
«Ora, tanta coisa. Tudo. Tenho pensado muito e...Dizem-nos para não matar, para não bater. Até não beber álcool, porque faz mal. E depois a televisão...Nos filmes, nos anúncios...Como é a vida, afinal?»
A mão largou o tricô e engoliu em seco. O pai respirou fundo como quem se prepara para uma corrida difícil.
«Ora vejamos,» disse ele olhando para o tecto em busca de inspiração. «A vida...»
Mas não era tão fácil como isso falar do desrespeito, do desamor, do absurdo que ele aceitara como normal e que a filha, aos oito anos, recusava.
«A vida...», repetiu.
As agulhas do tricô tinham recomeçado a esvoaçar como pássaros de asas cortadas.
Maria Judite de Carvalho in «O Jornal», 2-10-81

27.1.16

Auschwitz - Then and Now

FCC From Kaiser to Fuhrer: Auschwitz - Then and Now: BBC News article about the publication of a book by the Auschwitz-Birkenau State Museum in Poland. The book shows photographs taken in ...

25.1.16

O Homem dos Sonhos

Que nome dar ao poeta
esse ser dos espantos medonhos?
um só encontro próprio e justo:
o de José o homem dos sonhos

Eu canto os pássaros e as árvores
Mas uns e outros nos versos ponho-os
Quem é que canta sem condição?
É José o homem dos sonhos

Deus põe  e o homem dispõe
E aquele que ao longo da vereda vem
homem sem pai e sem mãe
homem a quem a própria dor não dói
bíblico no nome e a comer medronhos
só pode ser José o homem dos sonhos

Ruy Belo

23.1.16

Il Sogno di una Testa -- Testimonianze per Alberto Giacometti (1901-1966...

Arte e Sensibilidade

1) Toda a arte se baseia na sensibilidade, e essencialmente na sensibilidade. 

2) A sensibilidade é pessoal e intransmissível. 
3) Para se transmitir a outrem o que sentimos, e é isso que na arte buscamos fazer, temos que decompor a sensação, rejeitando nela o que é puramente pessoal, aproveitando nela o que, sem deixar de ser individual, é todavia susceptível de generalidade, portanto, compreensível, não direi já pela inteligência, mas ao menos pela sensibilidade dos outros. 
4) Este trabalho intelectual tem dois tempos: a) a intelectualização directa e instintiva da sensibilidade, pela qual ela se converte em transmissível (é isto que vulgarmente se chama "inspiração", quer dizer, o encontrar por instinto as frases e os ritmos que reduzam a sensação à frase intelectual (prim. versão: tirem da sensação o que não pode ser sensível aos outros e ao mesmo tempo, para compensar, reforçam o que lhes pode ser sensível); b) a reflexão crítica sobre essa intelectualização, que sujeita o produto artístico elaborado pela "inspiração" a um processo inteiramente objectivo — construção, ou ordem lógica, ou simplesmente conceito de escola ou corrente. 
5) Não há arte intelectual, a não ser, é claro, a arte de raciocinar. Simplesmente, do trabalho de intelectualização, em cuja operação consiste a obra de arte como coisa, não só pensada, mas feita, resultam dois tipos de artista: a) o inspirado ou espontâneo, em quem o reflexo crítico é fraco ou nulo, o que não quer dizer nada quanto ao valor da obra; b) o reflexivo e crítico, que elabora, por necessidade orgânica, o já elaborado. 
Dir-lhe-ei, e estou certo que concordará comigo, que nada há mais raro neste mundo que um artista espontâneo — isto é, um homem que intelectualiza a sua sensibilidade só o bastante para ela ser aceitável pela sensibilidade alheia; que não critica o que faz, que não submete o que faz a um conceito exterior de escola ou de moda, ou de "maneira", não de ser, mas de "dever ser". 

Fernando Pessoa, in 'Carta a Miguel Torga, 1930' 
in Citador

19.1.16

Young Syrians dream of home

 A drawing of home by Hale Selim, 13, a Syrian  drawing of home by Hale Selim, 13, a Syrian refugee girl who lives in Yayladagi refugee camp in Hatay province near the Turkish-Syrian border, Turkey, January 12, 2016. Syria's conflict has left hundreds of thousands dead, pushed millions more into exile, and had a profound effect on children who lost their homes or got caught up in the bloodletting. The drawings of young refugees living in Turkey show their memories of home and hopes for its future. The pictures also point to the mental scars borne by 2.3 million Syrian refugees living in Turkey, more than half of them children. REUTERS/Umit Bektas

https://pictures.reuters.com/

17.1.16

À espera dos Bárbaros


Porque esperamos, reunidos na praça?
Hoje devem chegar os bárbaros.


Porque reina a indolência no Senado?
Que fazem os senadores, sentados sem legislar?


É porque hoje vão chegar os bárbaros.
Que hão-de fazer os senadores?
Quando chegarem, os bárbaros farão as leis.


Porque se levantou o Imperador tão de madrugada
e que faz sentado à porta da cidade,
no seu trono, solene, levando a coroa?


É porque hoje vão chegar os bárbaros.
E o imperador prepara-se para receber o chefe.
Preparou até um pergaminho para lhe oferecer, onde pôs
muitos títulos e nomes honoríficos.


Porque é que os nossos cônsules, e também os pretores,
hoje saem com togas vermelhas bordadas?
Porquê essas pulseiras com tantos ametistas
e esses anéis com esmeraldas resplandecentes?
Porque empunham hoje bastões tão preciosos
tão trabalhados a prata e ouro?


Hoje vão chegar os bárbaros,
e estas coisas deslumbram os bárbaros.


Porque não vêm, como sempre, os ilustres oradores
a fazer-nos seus discursos, dizendo o que têm para nos dizer?


Hoje vão chegar os bárbaros;
e, a eles, aborrece-os os discursos e a retórica.


E que vem a ser esta repentina inquietação, esta desordem?
(Que caras tão sérias tem hoje o povo.)
Porque é que as ruas e as praças vão ficando vazias
e regressam todos, tão pensativos, a suas casas?


É porque anoiteceu e os bárbaros não vieram.
E da fronteira chegou gente
dizendo que os bárbaros já não vêm.


E agora que será de nós sem bárbaros?
De certo modo, essa gente era uma solução.



Konstandinos Kavafis ( Alexandria 1863 - 1933)

11.1.16

Com David Bowie


Com David Bowie morre um tempo particular, 
um tempo em que a juventude não morria.

Há uma geração de luto, vamos ficando cada vez mais sós, 
mais sós nas coisas que nos lembramos

David Bowie - Space Oddity




Ground Control to Major Tom


Ground Control to Major Tom

Take your protein pills and put your helmet on

Ground Control to Major Tom (Ten, Nine, Eight, Seven, Six)

Commencing countdown, engines on (Five, Four, Three)

Check ignition and may God's love be with you (Two, One,
Liftoff)



This is Ground Control to Major Tom

You've really made the grade

And the papers want to know whose shirts you wear

Now it's time to leave the capsule if you dare

"This is Major Tom to Ground Control

I'm stepping through the door

And I'm floating in the most peculiar way

And the stars look very different today

For here am I sitting in my tin can

Far above the world

Planet Earth is blue

And there's nothing I can do



Though I'm past one hundred thousand miles

I'm feeling very still

And I think my spaceship knows which way to go

Tell my wife I love her very much, she knows

Ground Control to Major Tom

Your circuit's dead, there's something wrong

Can you hear me, Major Tom?

Can you hear me, Major Tom?

Can you hear me, Major Tom?

Can you hear And I'm floating around my tin can

Far above the Moon

Planet Earth is blue

And there's nothing I can do."

10.1.16

o pintor Júlio Pomar faz hoje 90 anos


Um artista com mais de 80 anos tem sempre uma presença, uma densidade muito especial, são rochedos, magnetizam tudo à sua volta.

7.1.16

por um triz é o futuro

Nunca a vida foi tão actual como hoje: por um triz é o futuro. Tempo para mim significa a desagregação da matéria. O apodrecimento do que é orgânico como se o tempo tivesse como um verme dentro de um fruto e fosse roubando a este fruto toda a sua polpa. O tempo não existe. O que chamamos de tempo é o movimento de evolução das coisas, mas o tempo em si não existe. Ou existe imutável e nele nos transladamos. O tempo passa depressa demais e a vida é tão curta. Então — para que eu não seja engolido pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar depressa — eu cultivo um certo tédio. Degusto assim cada detestável minuto. E cultivo também o vazio silêncio da eternidade da espécie. Quero viver muitos minutos num só minuto. Quero me multiplicar para poder abranger até áreas desérticas que dão a idéia de imobilidade eterna. Na eternidade não existe o tempo. Noite e dia são contrários porque são o tempo e o tempo não se divide. De agora em diante o tempo vai ser sempre atual. Hoje é hoje. Espanto-me ao mesmo tempo desconfiado por tanto me ser dado. E amanhã eu vou ter de novo um hoje. Há algo de dor e pungência em viver o hoje. O paroxismo da mais fina e extrema nota de violino insistente. Mas há o hábito e o hábito anestesia. 

Clarice Lispector in 'Um Sopro de Vida' 

Citador

2.1.16

Bełżec


Há uma história da pureza e do horror
Perseguia-se um mal como quem persegue um bem

Sei de lugares que mesmo ao raiar do sol
permanecem obscuros, nem os pássaros por ali voam
e as árvores crescem a medo por dentro da densidade
do erro irreparável

Trazem-se flores, grupos de crianças
músicos para dedilharem suas arpas, violoncelos
crê-se que se pode lentamente desfazer a espessura da dor 



Maria José Botelho


Luka Sulic - Rachmaninov Vocalise