26.12.16

Prefácio

Assim é que elas foram feitas (todas as coisas) —
sem nome.
Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé.
Insetos errados de cor caíam no mar.
A voz se estendeu na direção da boca.
Caranguejos apertavam mangues.
Vendo que havia na terra
Dependimentos demais
E tarefas muitas —
Os homens começaram a roer unhas.
Ficou certo pois não
Que as moscas iriam iluminar
O silêncio das coisas anônimas.
Porém, vendo o Homem
Que as moscas não davam conta de iluminar o
Silêncio das coisas anônimas —
Passaram essa tarefa para os poetas.


Manoel de Barros

14.12.16

Os que ficaram para trás...


http://brasil.elpais.com/brasil/2016/12/14/internacional/1481696489_212282.html

Para que servem as instituições, os observatórios, a diplomacia? Aqui tudo parece falhar. Aqui, parece que tudo tem que falhar. O que será da Síria e dos que ficaram para trás quando um dia já nada restar? Como actuará o terrorismo quando aqui tudo se silenciar?

11.12.16

O embaraço da arte contemporânea

A arte contemporânea tornou-se um embaraço. São sintomas as múltiplas declarações de artistas contemporâneos estabelecidos, que circulam internacionalmente, que amiudadas vezes afirmam ver cada vez menos exposições de arte contemporânea, preferindo, em Veneza, entrar nas igrejas para contemplar Tintorettos e, em Madrid, visitar o Prado para aí admirar Goya ou Velázquez, em vez de ir à Feira do Arco.
À parte o snobismo latente, este tipo de afirmações é também comum entre cineastas, poetas compositores de música erudita, bem como entre muitos produtores dos dispositivos artísticos que transportam algum sentido de permanência e simultaneamente de imprevisibilidade. Não se trata de comentários nostálgicos das artes do passado, mas da sensação de que “estas artes” são fugazes e a “energia” que as artes da modernidade europeia continham terá desaparecido no meio da autofagia da globalização tecno-financeira. E, contudo, a arte contemporânea é inevitável que aconteça, mas o atributo “contemporâneo” como qualificativo desta arte é cada vez mais gerador de desalentos e equívocos, cuja grande responsabilidade está ligada ao facto de a sua matriz ser euro-atlântica, mas o seu mercado financeiro ser global e determinante no estabelecimento dos modos maioritários de produzir e consumir arte. E neste aspecto a imediatez e a quantidade, como os atributos desta arte assim (mal) classificada como contemporânea, aparecem sem essa energia e tempo e enigma dos Tintorettos, Dreyers, Kantors, etc.
Acrescente-se então que os sintomas acima referidos se transformaram em provas; provas de recepção artística quando existe um sentimento muito presente de clausura, fechamento, fim de festa, de que outrora a arte contemporânea se legitimava e assim justificava um novo tempo descontínuo em relação à história que a precedia.
Ao reivindicar ser exclusivamente contemporânea enquanto género, época, técnica, processo e linguagem, rompendo com o passado, muitas vezes em guerra contra o moderno em particular (a dança contemporânea, a Documenta de Kassel), a arte contemporânea não promete nada. Ao contrário das vanguardas, que rompiam mas prometiam outro futuro, outra medida, a arte contemporânea, por absoluta necessidade de afirmação, enreda-se em si própria ou, para ser mais preciso, e convocando a reflexão que António Guerreiro tem trazido a este debate, “o sistema de arte contemporânea e as suas figuras e instituições (as galerias, os museus, os centros de arte, as bienais)”. Foi esta eleição a uma categoria estética e a um género artístico onde qualquer acto desde que realizado no campo artístico é artístico — comer, assistir a vernissages, frequentar as festas das bienais e das feiras de arte — que transformou a arte contemporânea num campo onde tudo é semelhante, toda a actividade é homogénea, que nega a existência de um campo exterior seja ele a crítica ou a estética e funciona em pleno para o grande mercado. E aqui é fulcral referir Nicolas Borriaud, o grande defensor desta arte contemporânea auto-referencial que se mesmizou e que depende apenas de uma estética relacional e globalizante.
Este debate, que alguns reclamam, não é uma réplica das querelas antigos-modernos, porque não supõe um bloco ou uma estratégia de combate entre terrenos opostos, nem tão-pouco promove a defesa dos Antigos para que sejam citados na pintura actual ou para que se vista com a roupagem da actualidade uma peça de Sófocles. O debate visa compreender se é possível outra abordagem à arte que distinga o contemporâneo como categoria totalitária e açambarcadora, do contemporâneo como identificador de uma pertença (é-se contemporâneo de alguma coisa ou de alguém) e ainda da contemporaneidade como um conceito de vida sensitiva e intemporal. Para tanto é necessário começar por admitir que o salto dado da modernidade para a arte contemporânea não tem de ser pensado como um traçado em linha recta e, mais ainda, que a modernidade europeia é tão-só uma das modernidades que existiram a par de outras: asiáticas, indianas, americanas, africanas, cujo conhecimento começamos a ter. E, a admitirmos isto, aceitamos essa abordagem tão convincente quanto poética de Giorgio Agamben — como já antes Pasolini falara dos pirilampos — ao afirmar que a contemporaneidade não é uma evidência, nem algo que se torna visível na actualidade.
“Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro”, escreve o filósofo em “O que é ser contemporâneo” (2005)
No entanto, esta mesma capacidade, não só de entender a contemporaneidade, mas de a viver, é possível apenas quando recusamos a modernidade como uma exclusividade europeia, com a sua epistemologia que nega outros saberes, os ditos “não-saberes”, designação que abrange as formas e transmissão de conhecimento de tradições não europeias ou europeias sem narrativas lineares da história de arte. Neste sentido, assim como diz Eduardo Viveiros de Castro, as emoções podem surgir do confronto com imagens do início da produção cultural dos homens, como as das grutas de Lascaux ou do poema de Safo “... abrasas-me …” que podem ser arrebatadoras na sua contemporaneidade.
Se há, pois, um sistema da arte contemporânea autofágica, haverá ainda a possibilidade de uma contemporaneidade tão pragmática quanto vivencial?


António Pinto Ribeiro,  in O Público, 19.10.2016

5.12.16

Castelos do ar


Mudança de Idade

Para explicar
os excessos do meu irmão
a minha mãe dizia:
está na mudança de idade.
Na altura,
eu não tinha idade nenhuma
e o tempo era todo meu.
Despontavam borbulhas
no rosto do meu irmão,
eu morria de inveja
enquanto me perguntava:
em que idade a idade muda?
Que vida,
escondida de mim, vivia ele?
Em que adiantada estação
o tempo lhe vinha comer à mão?
Na espera de recompensa,
eu à lua pedia uma outra idade.
Respondiam-me batuques
mas vinham de longe,
de onde já não chega o luar.
Antes de dormirmos
a mãe vinha esticar os lençóis
que era um modo
de beijar o nosso sono.
Meu anjo, não durmas triste, pedia.
E eu não sabia
se era comigo que ela falava.
A tristeza, dizia,
é uma doença envergonhada.
Não aprendas a gostar dessa doença.
As suas palavras
soavam mais longe
que os tambores nocturnos.
O que invejas, falava a mãe, não é a idade.
É a vida
para além do sonho.
Idades mudaram-me,
calaram-se tambores,
na lua se anichou a materna voz.
E eu já nada reclamo.
Agora sei:
apenas o amor nos rouba o tempo.
E ainda hoje
estico os lençóis
antes de adormecer.


Mia Couto in Tradutor de Chuvas, 2011

2.12.16

Os Poderosos


Somos poderosos, porque de súbito invadimos o espaço público da opinião, da informação, da discussão, através da Internet, das redes sociais, dos computadores, dos portáteis, dos tabletes e dos telefones inteligentes.
É nosso esse espaço, pertence-nos, nele somos todos iguais, ou seremos, quando o número de seguidores que temos – que tenho – igualar o de, sei lá, um Cristiano Ronaldo, ou de um Justin Bieber, ou de qualquer outro ser humano a quem chamamos “famoso”. Por enquanto contentamo-nos com mil amigos (ou 654 ou 300 ou qualquer coisa assim), mas sabemos que neste maravilhoso mundo novo podemos vir a ter dezenas, que digo, centenas de milhares. Milhões de amigos?
Somos poderosos, porque a nossa página no Facebook é só nossa e dos nossos amigos – os 654 ou 300 ou assim –, que estão sempre de acordo connosco, nos dão força sem que sequer interesse o que escrevemos, interessa é que ninguém nos contraria, e ninguém nos contraria porque somos poderosos. Aliás, quem se atreva a contrariar-nos, a contrariar-me, já sabe, será “desamigado”, porque no meu espaço mando eu, e o meu espaço é meu, é privado, ninguém tem nada a ver com ele, e com as coisas (quiçá) boçais que por lá escreva, que lá escrevamos, só a mim dizem respeito, a mim e aos meus amigos, aqueles que eu não “desamiguei”, nem “desamigarei”.
O mundo mudou. Ninguém hoje ignora a força da nossa opinião e os políticos sabem que agora quem manda somos nós, sou eu, e a minha vontade anda por aí à solta, expressa-se em petições on-line sobre todos os assuntos a propósito dos quais tenho opinião própria; e eu tenho opinião própria sobre quase tudo. Publico-a em blogs patrocinados, coloco posts no meu perfil, assino comentários verrinosos, por vezes com um nome diferente, um alias qualquer, para que não me reconheçam; mas a opinião que emito fica registada e nunca mais desaparecerá.
Somos poderosos porque, como disse há dias em Portugal António Damásio, recusamos qualquer intermediação, temos acesso a toda a informação necessária e não precisamos de ninguém para isso, recusamos os peritos e os “expertos”, rejeitamos o saber dos doutores que sabem menos do que nós porque nós sabemos tudo, está tudo na net, na wikipédia. Somos poderosos “empoderados” da informação, que é poder, e temos o poder de dizer o que quisermos e todos terão de nos ouvir, porque nós, eu, somos, sou, a voz do homem comum, a voz da mulher comum e comigo falam todos os antigamente desapossados (da informação) do mundo.
Esta não é já a era do aquário, esta é a era em que as elites descem do seu pedestal e se misturam connosco, elas andam no meio de nós, já não são altivas, já não valem nada, só têm o nome, a posição, o dinheiro, a patine, a gravitas, e contudo são menos do que nós, os comuns, elas andam no meio de nós de cerviz curvada, envergonhada, e já não mandam nada.
Somos poderosos e temos poder, um pequeno vídeo viral e o governo cai, e os banqueiros vacilam, e os diplomatas somem-se, e os empresários vão presos, um soundbite bem esgalhado e os políticos assustam-se (e convocam uma comissão de inquérito), um funcionário é demitido, um agiota constituído arguido e uma reputação espoja-se na lama do diz que disse. Sabem como é fácil pôr a circular um boato? Façam as contas a mil amigos vezes 10 (partilhas) vezes 20, vezes 30 e ao quarto nível de partilha já mais de 6 milhões repetem a história.
Quem resiste ao nosso poder? Um senhor respeitável, das elites, publica um texto respeitável, e nós destruímo-lo nas caixas de comentários, fazemos chiste com ele em posts no Face ou rápidas alfinetadas no twitter, que dão a volta ao mundo e regressam com o senhor respeitável devidamente desrespeitado – fazemo-lo só porque podemos e ele pertence à classe dos que lêem e investigam e pensam e opinam.
Somos tão poderosos que nos damos ao luxo de escrever ou falar com erros, quem quer saber da correcção gramatical ou da harmonia sintática, vícios dos cultos e letrados a erradicar a todo o custo? No meu mundo, que é todo o mundo, eu estou de mau humor sempre que quiser, não sei onde vive essa gente armada em fina (e esperta) que despreza o espaço público em que nós vivemos, nós os poderosos de agora, que mais depressa os enterramos do que as luzes enterraram o antigo regime; no meu mundo, estou sempre de mal humor para com os velhos decadentes digital-analfabetos.
Ninguém nos faz frente, porque nós temos a força do número, viajamos à velocidade da luz e pensamos com a simplicidade da vida. Ninguém nos confronta porque é perigoso fazer-nos frente: somos o futuro, eles são o passado; somos muitos, não precisamos deles, e eles precisam de nós; somos imunes à crítica, porque (no fundo) não a percebemos, mas eles percebem muito bem o risco que correm, e o mal que a nossa crítica mal escrita – e pejada de insultos, mais ou menos escatológicos – lhes pode fazer. E por isso, eles, os pensadores, os escritores, os cultos, os plumitivos, os publicistas, os competentes, os consultores, eles, os antigos donos do mundo, vivem com medo do que possam ler nas redes, do que possa viajar à velocidade da luz até aos antípodas e volta.
Eles sabem que neste maravilhoso mundo novo que é o nosso, nada se perde, tudo se recorda. Os mais ínfimos dos seus pecadilhos transformam-se aqui em gelatina gordurosa que se pega para sempre aos seus cvs, que emporcalha em definitivo os seus perfis. Têm medo. E fazem-se politicamente correctos, seja para dar razão à maior bacorada que nós digamos, que eu escreva, que alguém poste como comentário no seu face ou no seu twitter, seja para se auto-denunciar, denegrindo-se, na esperança quase vã de conquistar mais um instante de sossego. Não que lhes sirva de muito, a sua espécie está moribunda.
Sou poderoso. Rejeito a cultura e o saber dos outros, porque tenho na ponta dos dedos a chave de todo o conhecimento do mundo. Sou o bite, o megabite, o gigabite que domina a civilização terrena no século XXI.
Mas não sou o mais poderoso; esse é o que me controla, à distância e em silêncio.


PS. Está a acontecer. E a ordem antiga, feita de eleições, encontros físicos, amizades reais e calor humano, cede perante a onda avassaladora, tsunâmica, solitária, do maravilhoso mundo virtual. Em breve seremos todos avatares uns dos outros.
, in Observador

1.12.16

Até as ruínas podemos amar neste lugar

Lembro-me muito bem do tal cantor basco
que costumava celebrar a chuva no verão
Não ligava quase nada para as conspirações
que recorrentemente se faziam ouvir
debaixo das arcadas noturnas da cidade
naquela época do intermezzo lunar
Foi já depois do fascismo, um pouco antes
da democracia enfaixada em magnólias
O cantor, as arcadas, o perfume e os disparos
me ensinaram que se deve aproveitar a época
de transição para destrinçar o brilho
As revoluções sempre foram o lugar certo
para a descoberta do sossego:
talvez porque nenhuma casa é segura
talvez porque nenhum corpo é seguro
ou talvez porque depois de encarar uma arma
finalmente possa ser possível entender
as múltiplas possibilidades de uma arma.
Matilde Campilho in Jóquei, 2014

Luz e sombra


Zilinskas Art Gallery in Kaunas City, Lithuania

Vulok Vulovak, Unedited photograph

24.11.16

Árvore



“Sê atrevido – e levanta, nem que seja só em imaginação, a tua própria árvore, nos sítios mais inesperados.

E principalmente que ela atravanque tudo, suspenda a lufa-lufa dos negócios, se oponha, escandalosa, aos frenéticos automobilistas e os obrigue a fazer grandes desvios, para não baterem nela e nela acabarem por apodrecer encaixotados, como pobres mortais que são.”

(1974, Dia Mundial da Árvore)

Alexandre O´Neill (1924 – 1986)

20.11.16

Um artigo para pensar: "LIÇÕES DA AMERICA" no DN

Há uma espécie de concurso entre as elites europeias e americanas de esquerda: quem insulta mais Donald Trump? Quem consegue escolher os epítetos mais violentos? Racista, boçal, cretino, sexista, corrupto, inculto e xenófobo estão entre os mais utilizados. Isto para além das classificações brandas de fascista e populista.
No entanto, o problema não é o de qualificar Trump nem de sublinhar a sua incultura e a sua falta de sofisticação. O problema consiste em saber por que razão foi eleito. Contra a opinião sondada e publicada, este senhor foi escolhido por 60 milhões de americanos que, creio, não são todos racistas, machistas, bandidos, milionários, fascistas e corruptos. E, se fossem, a questão era ainda mais difícil: como é possível que houvesse tantos assim?
O problema não é o de classificar os defeitos de Trump e seus apoiantes nem de mostrar como são violentos, intolerantes, xenófobos e déspotas. O problema é o de saber por que razões perderam os virtuosos, os democratas, os liberais, os intelectuais, os jornalistas e os artistas. O problema é o de saber por que razão os pobres, os desempregados e os marginalizados não votaram em quem deveriam votar, isto é, em quem pensa que a solidariedade, a segurança social, o emprego e a igualdade são exclusivos dos democratas e das esquerdas.
As esquerdas em geral, incluindo artistas, intelectuais, jornalistas, liberais americanos e progressistas europeus, não suportam não ter percebido nem ter previsto o que aconteceu. Como não admitem que são, tantas vezes, responsáveis pelas derivas políticas dos seus países.
Já correm pelo mundo explicações fabulosas sobre estas eleições. As mais hilariantes são duas. Uma diz que, além dos machistas e dos racistas, votaram em Trump os analfabetos, os desesperados, os marginalizados pelo progresso, os desempregados e os supersticiosos. A outra diz que o fiasco das sondagens, dos estudos de opinião e dos jornalistas se deve ao facto de os reaccionários terem vergonha de dizer em quem votariam! Por outras palavras: quem não presta votou em Trump; e quem votou em Trump enganou-nos!
Tal como os democratas em geral, as esquerdas atribuem sempre as culpas das suas derrotas aos defeitos dos outros, da extrema-direita, dos ricos, dos padres, dos fascistas, dos proprietários, dos patrões, dos corruptos e agora dos populistas. Não pensam que os culpados são ou também são eles, os democratas, ou elas próprias, as esquerdas. Raramente se dão conta de uma verdade velha, com dezenas de anos, mas sempre esquecida: as democracias não caem por serem atacadas, não são derrubadas pelos seus inimigos, caem por sua própria responsabilidade, porque enfraquecem, porque se dividem, porque perdem tempo e energias com quezílias idiotas e porque deixam que o sistema político perca de vista as populações. Também, finalmente, porque acreditam nas suas virtudes, porque confiam na sua racionalidade e porque consideram que têm o exclusivo da bondade e da compaixão.
As esquerdas (nas suas versões americana e europeia) apresentam-se cada vez mais como uma soma de sindicatos e de clientelas: mulheres, negros, operários da indústria, desempregados, pensionistas, homossexuais, artistas, intelectuais, imigrantes, latinos ou muçulmanos. Todas as minorias imagináveis, incluindo as mulheres que o não são. Às vezes, resulta. Mas acaba sempre por não resultar. As esquerdas abandonaram as ideias e os direitos universais dos cidadãos e valorizam as suas circunstâncias étnicas, sociais ou sexuais. Como também abandonaram a capacidade de pensar a identidade nacional, entidade ainda hoje vigorosa e reduto de referências pessoais e culturais.
Acima de tudo, a arrogância e a superioridade moral, cultural e política das esquerdas têm destes resultados: afastam-nas do povo e favorecem os inimigos da democracia.

António Barreto 13-11-2016 no Diário de Notícias

Soyuz rendezvous and docking explained

16.11.16

se um dia destes parar não sei se morro logo,

se um dia destes parar não sei se morro logo,
disse Emília David, a padeira,
não sei se fazer um poema não é fazer um pão
um pão que se tire do forno e se coma quente ainda por entre as 
linhas
um dia destes vejo que não vou parar nunca,
as mãos súbito cheias:
o mundo é só fogo e pão cozido,
e o fogo é que dá ao mundo os fundamentos da forma,
pão comprido nas terras de França,
pão curto agora nestes reinos salgados,
se parar não sei se não caio logo ali redonda no chão frio
como se caísse fundo em mim mesma,
ã mão dentro do pão para comê-lo
- disse ela

Herberto Helder in A Morte sem Mestre, 2014

11.11.16

What I’m Doing Here


I do not know if the world has lied
I have lied
I do not know if the world has conspired against love
I have conspired against love
The atmosphere of torture is no comfort
I have tortured
Even without the mushroom cloud
still I would have hated
Listen
I would have done the same things
even if there were no death
I will not be held like a drunkard
under the cold tap of facts
I refuse the universal alibi
Like an empty telephone booth passed at night
and remembered
like mirrors in a movie palace lobby consulted only on the way out
like a nymphomaniac who binds a thousand
into strange brotherhood
I wait
for each of you to confess

poem by Leonard Cohen in Flowers for Hitler, 1964

Leonard Cohen - Closing Time

uma homenagem a Leonard Cohen por Miguel Esteves Cardoso

Meu grande sacana,
Passámos um fim-de-semana juntos em que me fizeste esquecer que eras o meu herói. Quando acabou fiquei com dois heróis: com o Leonard Cohen das canções e com o Leonard Cohen em carne e osso.
Embebedámo-nos com Bloody Marys e, a certa altura, tu reparaste que eu tinha a mania de desdizer o que tinha acabado de dizer. Eu disse-te que era um tique português. Primeiro afirma-se um disparate ou uma verdade. Depois continua-se “E, no entanto…”
“And yet!”, gritaste, “the two greatest words in any language!” Depois desataste a dar exemplos. A uma mulher que te amava e queria casar contigo: “I love you… AND YET… I cannot marry you this year”. Ao barman: “Bem sei que já bebi a minha conta… AND YET… apetece-me outro Bloody Mary”.
Prometemos escrever um ao outro. Quando eu falhei mandaste-me um telegrama com duas palavras e três pontos: “AND YET…”
Depois da notícia quase funerária no New Yorker fizeste questão de aparecer em Los Angeles a dizer que, quando disseste que estavas pronto para morrer, estavas a ser dramático. Fizeste-nos rir. Prometeste viver até aos 120 anos. Prometeste-nos mais dois álbuns de canções.
Mentiroso! Sempre foste o mais sublime dos mentirosos. Nem era preciso mentires: eu julgava que ias viver para sempre, como sempre tinhas vivido. Agora morreste e obrigas-me a escrever estas palavras lavadas em lágrimas. AND YET… E, no entanto, tiveste uma vida feliz. Fizeste o que querias. Amaste e foste amado. Trabalhaste nas canções mais bonitas e elevadas do nosso tempo. Já há mais de 60 anos que andaste a falar com Deus, a preparar o teu caminho. Foste um pecador de primeira AND YET… E, no entanto, algo me diz que vais ser muito bem recebido no reino dos céus, se fôr para aí que combinaste ir.
Deixaste-nos. Avisaste muitas vezes que nos ias deixar. Deixar tornou-se a tua especialidade. Ninguém se despedia tão bem como tu. Ninguém dava à sola tão depressa como tu, tão bem vestido, com sapatos feitos para percorrer as grandes distâncias do amor e da vida.
Partiste e, no entanto, continuas cá. Eu vi o tamanho do teu caderno gigante, cheio de versos e desenhos. Espero bem que haja centenas de canções que tu julgaste que ainda não estavam prontas, mas que estão.
Agora que morreste escusamos essas canções de serem perfeitas, como aquelas que escreveste e cantaste enquanto eras vivo. Enquanto eras vivo - estas palavras ainda custam mais a escrever do que a simples palavra “morreste”.
Sabes porquê? Aposto que ainda sabes mais, aí no lugar onde estás, na Tower of Song. Porque “morreste” ainda é uma coisa que tu fizeste. Morreste, sacana. É uma coisa de que podemos acusar-te; é um verbo que podemos atirar-te à cara. Em contrapartida “enquanto eras vivo” já pertence a um passado em que já fizeste tudo o que tinhas para fazer, incluíndo morrer.
Uma pessoa tem de morrer. E até a morrer foste um senhor. Pouco antes de morrer - sabemos agora - percorreste o mundo para cantar as tuas canções a quem quisesse ver-te a cantá-las. E melhor do que em qualquer outra altura da tua vida. Tu foste daqueles que melhoram à medida que se aproximam da morte. Aproximaste-te devagarinho, sem ser a medo, como se a morte fosse a última mulher. Cantaste-lhe a canção do bandido - nunca ninguém será capaz de cantá-la melhor do que tu - a ver se ela ia na tua cantiga. Deitaste-te com ela na esperança que ela te esquecesse. And yet e, no entanto (aqui sinto-te a sorrir) ela deu cabo de ti à mesma.
Toda a vida dançaste com Deus e com a morte – às vezes eram mulheres, outras vezes professores – e algumas dessas vezes acabaram como canções, divinas de amor e de vida, escritas por quem conheceu a alegria e a tristeza de amar e viver e viver e amar.
Morreste, Leonard Cohen e, no entanto, continuas vivíssimo para quem já morreu. Hoje de manhã, quando ouvi You Want It Darker, como faço todas as manhãs desde que saiu o álbum, pensei que ia chorar, por ser a primeira vez que o ouvi sabendo que estavas morto. Mas não chorei. As canções fizeram o que sempre fizeram: encheram-me de força, abriram-me ao medo e à beleza de estar vivo.
Adeus, Leonard Cohen, dizemos nós como se não soubéssemos que já lá estás.

Miguel Esteves Cardoso in Público 11.11.2016

10.11.16

Onde está a sabedoria?


Onde está a sabedoria que nós perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que nós perdemos na informação?

T.S. Eliot (1888 - 1965)

9.11.16

Bom dia Europa

Agora multiplicam-se as reacções de indignação pela vitória de Trump, mas esquecemo-nos que ele foi eleito democraticamente. Deveríamos estar a pensar porque é que isto aconteceu e o que acontecerá provavelmente um dia destes também na Europa. A política das últimas décadas falhou em demasiadas áreas, há um descrédito enorme pelas instituições e pelo poder. Nada está garantido e o mundo está cada vez mais dividido. Cabe aos conscientes e aos responsáveis acordar as hostes para que um dia não acordemos num Mundo irreconhecível.


6.11.16

David Bowie & Pat Metheny Group - This Is Not America (official video re...

O que sobrou da "nossa" America sonhada?

O que sobrou da "nossa" America sonhada? 
Talvez a vastidão do espaço e a força de uma natureza que nos transmite uma ideia de liberdade


30.10.16

Muda de Vida ou Muda de Poema


Um poema não é uma coisa que se coloca sobre o teu dia como um condimento sobre o teu almoço. A vida de uma pessoa não tem material semelhante a nada que conheças. Existir é feito de peças impossíveis de copiar. E a poesia não entra nesse material único - a vida de uma pessoa - como o avião no ar ou o acidente do avião na terra dura. Um poema não é manso nem meigo, não é mau nem ilegal. 
Os homens não se medem pelos poemas que leram, mas talvez fosse melhor. O que é a fita métrica comparada com algo intenso? Há poemas que explicam trinta graus de uma vida e poemas que são um ofício de demolição completa: o edifício é trocado por outro, como se um edifício fosse uma camisa. Muda de vida ou, claro, muda de poema. 

Gonçalo M. Tavares, in 'A Perna Esquerda de Paris' 
(citador)

26.10.16

beira-mar sonhada

fotografia de Steffen Egly


que mínima gente vem por aí à volta e aperta aperta

que mínima gente vem por aí à volta e aperta aperta
que nem se pode respirar,
gente que não precisa de oxigénio nem pensamento,
nem de uma só palavra que brilhe
e vá ao fundo da luva como a mão presta,
grande parte do povo não usa nenhuma
nem guarda nada de cabeça.
?que coisa é esta que nem se move,
que não é um planeta,
que buraco é este por onde tudo se some?
- e eu pedi ao balcão: dê-me um poema,
e o empregado olhou para mim estupefacto:
- isto aqui é o mundo, monsieur, aqui não se servem bebidas alcoólicas
- mas - ia eu para dizer, mas calei-me de repente
e pensei muito longe:
quero voltar depressa aos modos do mundo dos assombros
(ó mundo, pesa inteiro sobre ti mesmo!)

Herberto Helder in Letra Aberta

20.10.16

a verdade


Nós já esquecemos completamente o axioma de que que a verdade é a coisa mais poética no mundo, especialmente no seu estado puro. Mais do que isso: é ainda mais fantástica que aquilo que a mente humana é capaz de fabricar ou conceber... de facto, os homens conseguiram finalmente ser bem sucedidos em converter tudo o que a mente humana é capaz de mentir e acreditar em algo mais compreensível que a verdade, e é isso que prevalece por todo o mundo. Durante séculos a verdade irá continuar à frente do nariz das pessoas mas estas não a tomarão: irão persegui-la através da fabricação, precisamente porque procuram algo fantástico e utópico. 

Fiodor Dostoievski

8.10.16

"Mar de Sines" || Trailer

Construção Vazia


escultura de Jorge Oteiza, San Sebastian

ATÉ AS RUÍNAS PODEMOS AMAR NESTE LUGAR


Lembro-me muito bem do tal cantor basco
que costumava celebrar a chuva no verão
Não ligava quase nada para as conspirações
que recorrentemente se faziam ouvir
debaixo das arcadas noturnas da cidade
naquela época do intermezzo lunar
Foi já depois do fascismo, um pouco antes
da democracia enfaixada em magnólias
O cantor, as arcadas, o perfume e os disparos
me ensinaram que se deve aproveitar a época
de transição para destrinçar o brilho
As revoluções sempre foram o lugar certo
para a descoberta do sossego:
talvez porque nenhuma casa é segura
talvez porque nenhum corpo é seguro
ou talvez porque depois de encarar uma arma
finalmente possa ser possível entender
as múltiplas possibilidades de uma arma.

Matilde Campilho in Jóquei, 2014

5.10.16

Transiberiano fez ontem 100 anos


Há cem anos, os números que envolvem a maior ferrovia do mundo impressionam como a paisagem que risca a janela do lado de fora do trem. Conhecida como Transiberiana a ferrovia entre Moscovo e Vladivostok possui 9.288 km de extensão, cruza 7 fusos horários e sua travessia pode ser feita em até 8 dias de viagem.
Concluída em 1916, a construção da Linha Transiberiana começou a ser realizada em 1891, mas o processo de electrificação só ficaria pronto quase 90 anos depois, em 2002. A ideia de uma ferrovia na região surgiu no século XIX como alternativa para driblar as longas distâncias daquele território de dimensões continentais.
Um dos destaques da rota é a passagem pelo Lago Baikal,  considerado o maior lago de água doce da Ásia – o maior e mais profundo em todo o mundo com até 1.680 metros de profundidade.
O ramal principal de Moscovo à distante Vladivostok, próximo às fronteiras da China e da Coréia do Norte, dá acesso a linhas regionais por onde passam trens com destinos a Mongólia, Pequim e Pyongyang, capital da Coreia do Norte.
Fonte: http://viagemempauta.com.br/

4.9.16

Da Leveza

"A revolução da leveza continua a avançar, mas não conseguimos encontrar harmonia nas nossas vidas: não nos torna felizes (…). Nunca tivemos tantas possibilidades de viver levemente, mas, no final, a alegria de viver não aumenta” (Da Leveza, p.332)

28.8.16

Belas Artes

"O que nós entrevemos na natureza é força que devora força, nada há que mantenha a sua presença, tudo está de passagem, milhares de sementes são pisadas, a cada momento nascem outras milhares, todas elas grandes e significativas, multiplicando-se até ao infinito; belo e feio, bom e mau, tudo existe lado a lado com igual direito. E a arte é precisamente a contrapartida, ela nasce dos esforços do indivíduo para se manter contra a força destruidora do todo."

Goethe

25.8.16

Aos Amigos

Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
— Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De paixão.


Herberto Helder

2.8.16

É urgente o amor












É urgente o amor
É urgente um barco no mar
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade, 
alguns lamentos, muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.

Eugénio de Andrade 

17.7.16

Que estupidez o sangue nas calçadas!

Que estupidez o sangue nas calçadas!

O sangue fez-se para ter dois olhos,
um lépido pé, um braço agente,
uma industriosa mão tocante.

Que estupidez o sangue entre as palavras!

O sangue fez-se para outras flores
menos fáceis de dizer que estas
agora derramadas.


Alexandre O' Neill, In Feira Cabisbaixa, 1965

8.7.16

Portugal no Mundo


Portugal é provavelmente dos paises europeus o pode dizer que as suas ex-colonias festejam com alegria a vitória do ex-colonizador. Em Timor, em Cabo Verde, na Guiné ... festeja-se com grande entusiamo os bons resultados da selecção como se a vitória também fosse deles. E é!

4.7.16

Lugares especiais

                 Ilha do Pessegueiro, Litoral Alentejano, Portugal

27.6.16

Tecendo a Manhã


Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

20.6.16

Pesar o coração


No Antigo Egipto o julgamento dos mortos no tribunal subterrâneo (muitas vezes chamado Salão das Duas Verdades) o coração do morto era pesado contra uma pena ou um algodão (representando simbolicamente Maat). O coração que pesasse mais do que a pena era considerado indigno. Os indivíduos de coração bom e puro eram enviados para Aaru[21] .
A pesagem do coração era normalmente retratada no papiro no Livro dos Mortos ou em cenas de tumbas. Mostra Anúbis supervisionando a pesagem e a Ammit sentada, aguardando os resultados para que pudesse consumir aqueles que falharam. A imagem seria o coração do morto em um dos lados da balança e pena de Maat no lado oposto[22] . 

https://pt.wikipedia.org/wiki/Maat

A relação do ser e do horizonte é circular


A relação do ser e do horizonte é circular. É talvez o aberto que cria o horizonte, é talvez a respiração que abre o mundo. Mas o alento não poderia romper sem a linha pura do horizonte e na lâmpada da respiração não se acenderia se o mundo não fosse já o extenso mundo do aberto. Por isso a escuta é a espera vazia aberta ao tempo e à possibilidade de uma palavra livre mas fiel à simplicidade nova de um começo.

António Ramos Rosa in Relâmpago de Nada