28.2.16

26.2.16

Coração Numeroso, para lembrar o Brasil neste dia tão frio

Foi no Rio.
Eu passava na Avenida quase meia-noite.
Bicos de seio batiam nos bicos de luz estrelas inumeráveis.
Havia a promessa do mar
e bondes tilintavam,
abafando o calor
que soprava no vento
e o vento vinha de Minas.Meus paralíticos sonhos desgosto de viver
(a vida para mim é vontade de morrer)
faziam de mim homem-realejo imperturbavelmente
na Galeria Cruzeiro quente quente
e como não conhecia ninguém a não ser o doce vento mineiro,
nenhuma vontade de beber, eu disse: Acabemos com isso.Mas tremia na cidade uma fascinação casas compridas
autos abertos correndo caminho do mar
voluptuosidade errante do calor
mil presentes da vida aos homens indiferentes,
que meu coração bateu forte, meus olhos inúteis choraram.O mar batia em meu peito, já não batia no cais.
A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu
a cidade sou eu
sou eu a cidade
meu amor.

Carlos Drummond de Andrade

22.2.16

Acreditar na Beleza

.
O que significa acreditar na beleza? Não sei, talvez seja como quem acredita num sonho de verdade. Sei que acredito, como um sol, uma bondade maior, uma reconcialiação da forma com luz, de um movimento com a dança, de um som com a eternidade. Creio no momento e no milagre. Creio na beleza como elemento único, revelando o esplendor de reunir nele todo o universo.

(reposição)

20.2.16

Umberto

Um pequeno excerto do que Umberto Eco (1932-2016) pensava das redes sociais, ele que foi o mais mediático dos filósofos. Toda a gente sabe quem é ou já ouviu falar do seu nome, mesmo os nunca leram uma única frase da sua obra conhecem-no como uma "rock star" da filosofia.

“As redes sociais têm gerado uma invasão de imbecis, a quem dão o direito de falar a legiões de imbecis. Antes apenas falavam no bar depois de um copo de vinho, sem prejudicar a comunidade e agora têm o mesmo direito de falar que prémio Nobel. É a invasão dos tolos “ 

Umberto Eco ao jornalLa Stampa

18.2.16

World Press Photo of the Year 2015 goes to Warren Richardson

A man passes a baby through the fence at the Hungarian-Serbian border in Röszke, Hungary, 28 August 2015. © Warren Richardson

17.2.16

Coragem

Se estás disposto a nunca usar da violência, e sempre resistindo, torna-te forte de corpo e de alma; é a mais difícil de todas as atitudes; exige a constante vigilância de todos os movimentos do espírito, o domínio completo de todos os impulsos dos nervos e dos músculos rebeldes; a agressão é fácil contra o medo e também a primeira solução; para que, em todos os instantes, a possas pôr de lado e substituí-la pela tranquila recusa, não te deves fiar nos improvisos; a armadura de que te revestes nos momentos de crise é forjada dia a dia e antes deles; faz-se de meditação e de ginástica, de pensamento definido e preciso e de perfeitos comandos; quando menos se prevê surge o instante da decisão; rápida e firme, sem emoções ou sufocando-as, tem que trabalhar a máquina formada. 
Que trabalhar, sobretudo, humanamente; a visão do autómato é a pior de todas para os amigos do espírito; não serão teus elementos nem a secura, nem a estóica dureza, nem o ar superior, nem as cortantes palavras; requere-se no inabalável a humanidade, o sorriso afectuoso, a íntima bondade, a desportiva calma, amiga do adversário, de quem joga um bom jogo; sozinho guardarás as lutas interiores que tens de suportar, a batalha contínua para impores o silêncio aos instintos de ataque e da vingança; será tua boa auxiliar a pele dura e uma carne que, domada, suporte, sem revolta, as provações e os trabalhos; o óleo do ginásio ajuda Marco Aurélio; quem se adivinha senhor de si melhor resistirá sem violência a tudo o que inventou a real fraqueza do contrário; e só tem que se guardar dos perigos da altivez e do desprezo. 

Agostinho da Silva, in 'Considerações e Outros Textos'

citador

15.2.16

Tree



Tree #5, 2007, Myoung Ho Lee
From the series Tree 
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Coração Habitado

Aqui estão as mãos. 
São os mais belos sinais da terra. 
Os anjos nascem aqui: 
frescos, matinais, quase de orvalho, 
de coração alegre e povoado. 

Ponho nelas a minha boca, 
respiro o sangue, o seu rumor branco, 
aqueço-as por dentro, abandonadas 
nas minhas, as pequenas mãos do mundo. 

Alguns pensam que são as mãos de deus 
— eu sei que são as mãos de um homem, 
trémulas barcaças onde a água, 
a tristeza e as quatro estações 
penetram, indiferentemente. 

Não lhes toquem: são amor e bondade. 
Mais ainda: cheiram a madressilva. 
São o primeiro homem, a primeira mulher. 
E amanhece. 

Eugénio de Andrade, in "Até Amanhã" 

citador

14.2.16

The Wings


The Wings, 2009, oil on resin, stainless steel - XOOANG CHOI

Que nenhuma estrela queime o teu perfil



Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.


Sophia de Mello Breyner

9.2.16

todos os tempos




Todos os tempos dentro deste tempo

e as pessoas serão sempre um pormenor florido
a desordem de um eco, uma arma a passar




Maria José Botelho

o retirar da máscara

Eyes Wide Shut,1999

7.2.16

uma reflexão para os que escrevem ...


"O que é, aliás, um poema, senão aquela operação linguística que consiste em tornar a língua inoperativa, em desativar as suas funções comunicativas e informativas, para abrir a um novo possível uso? Ou seja, a poesia é, nos termos de Espinosa, uma contemplação da língua que traz de volta para o seu poder de dizer. Assim, a poesia de Mandelstam é uma contemplação da língua russa, os Cantos de Leopardi são uma contemplação da língua italiana, as Iluminações de Rimbaud, uma contemplação da língua francesa, os hinos de Hölderlin, e os poemas de Ingeborg Bachmann, uma contemplação da língua alemã, etc. Mas em todo caso trata-se de uma operação que ocorre na língua, que atua sobre o poder de dizer. E o sujeito poético não é o indivíduo que escreveu os poemas, mas o sujeito que se produz na altura em que a língua foi tornada inoperativa, e passou a ser, nele e para ele, puramente dizível."

Giorgio Agamben, 2007