20.6.17

sem palavras

fotografia de JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

15.6.17

Um poema

Chegam cedo demais, quando ainda não podem escolher 
nem decidir. Vêm carregados de espectros, de memórias
e de feridas que não souberam sarar; mas trazem a confiança
da cura nas palavras. Convencem-se de que amam outra vez

quando nos tocam os pequenos lugares, esquecendo-se do rumo
incerto dos seus passos nas estradas tortuosas que os 
trouxeram. Abafam-se num cobertor de mentiras sem saber e 
falam de injustiça quando tentamos chamá-los à verdade. 

Dormem de vez em quando nas nossas camas e protegemo-los 
da dor como aos filhos que não iremos ter nunca
porque não nos resignamos a perdê-los. E, um dia, partem, vão 

culpados, não chegam a explicar o que os arrasta. Escrevem
cartas mais tarde - uma ou duas para se aliviarem dessa espada.
E nós ficamos, eternamente, sem vergonha, à espera que regressem. 

Maria do Rosário Pedreira, in Poesia Reunida, ed. Quetzal 

5.6.17

Inventário da nossa civilização

Fazer o inventário ou uma análise da nossa civilização, quer dizer o quê? Procurar esclarecer, de uma maneira rigorosa, a armadilha que fez do homem escravo das suas próprias criações. Por onde se infiltrou a inconsciência entre a acção e o pensamento metódicos? Na vida selvagem, a evasão constitui uma solução preguiçosa. É preciso reencontrar, na própria civilização em que vivemos, o pacto original entre o espírito e o mundo. De resto, trata-se de uma tarefa impossível de concretizar, por causa da brevidade da vida e da impossibilidade da colaboração e da sucessão. O que não é razão para não a empreender. Estamos todos em situação análoga à de Sócrates, o qual, enquanto esperava a morte na prisão, aprendeu a tocar lira... pelo menos, teremos vivido... 

Simone Weil, in 'A Gravidade e a Graça' 
(Citador)