29.1.17

A democracia, a ditadura e o divino

Após cinquenta anos de desenvolvimento, de protecção social, de paz e de liberdade, o mundo ocidental entrou em crise. Economias e sistemas políticos não acertam. As populações não acreditam. As forças centrífugas fazem sentir o seu efeito. Em quase todos os países democráticos surgem perturbações e ameaças difíceis de conter. Na maior parte desses países, é fácil encontrar o preconceito como resposta ao preconceito. Ou o nacionalismo como reacção contra a liberdade e o cosmopolitismo. Meio século de esplendoroso progresso parece ameaçado
Estamos a viver tempos difíceis. As democracias estão a falhar. São como aqueles motores de automóvel que, aos soluços, dão sinais de que alguma coisa, gasolina, velas ou carburador, está a falhar. As democracias têm tido enormes dificuldades em lidar com a fúria capitalista e a ganância financeira. Têm revelado fraqueza em tratar com as esquerdas revolucionárias. São débeis na reacção ao nacionalismo. Têm mostrado pusilanimidade em combater os grandes grupos económicos multinacionais. Não conseguem sobrepor-se à ditadura das sondagens, da publicidade e da propaganda. Têm tendência para deixar crescer as desigualdades sociais. Perdem o sentido de Estado e rendem-se facilmente ao mercado. São frágeis perante a demagogia das esquerdas e o populismo de toda a gente. Têm medo dos estrangeiros, dos refugiados e dos imigrantes. Têm receio de parecer racistas. Quase conseguem conviver com o terrorismo, sobretudo o reclamado pelas minorias. Encontram razões sociais, origens familiares e causas políticas para explicar, justificar e desculpar o crime, o terrorismo, a violência doméstica, o insucesso escolar e a falta de disciplina. Têm medo de parecer autoritários. As democracias deixam-se deslizar e não conseguem evitar a deriva da demagogia e do preconceito.
Democratas começam a pensar que, se a democracia não é capaz de combater esses novos inimigos, talvez seja de imaginar soluções mais duras, nacionalistas de esquerda ou de direita, capazes de contrariar os estrangeiros, liquidar o mercado e eliminar a iniciativa privada. Uns procuram recorrer à religião e ao divino, sejam os cultos estabelecidos sejam as novas seitas. Outros, pelo contrário, culpam o divino e procuram contrariar todo e qualquer contributo das religiões para a vida colectiva.
Dentro e fora da democracia, os esforços para casar governo e igreja, para ligar política e religião, sucedem e aumentam. Donald Trump não gosta de Darwin e já fez declarações arrepiantes sobre os fundamentos religiosos da família. Putin vai buscar os chefes da Igreja Ortodoxa cada vez que se vê atrapalhado. Enquanto o Papa Francisco irrompe pelos territórios tradicionais da esquerda, as direitas europeias afastam-se da religião ou sonham com uma restauração tridentina. Na China, os poderes procuram de novo em Confúcio uma ajuda para o comunismo do dia. Noutros países asiáticos, tenta-se encontrar em Buda colaboração para combater os temores. Em Israel, em Gaza, em Teerão, em Riade, em Bagdad, em Manila e em Jacarta os Estados tentam conviver com a religião e convencer os fiéis. Na Turquia, Erdogan revê as relações do Estado com a religião. Noutros casos, a religião apodera-se das alavancas dos poderes políticos e militares.
Há ditadores que encontram fácil ligação com os deuses e as igrejas. Outros que se lhes opõem ferozmente. Há igrejas que combinam bem com o poder político ditatorial. Outras que calam e consentem. Outras ainda que não consentem e são caladas.
Apesar da escravatura, mau grado a Inquisição, não obstante a contra-reforma e outras formas de cumplicidade das igrejas com o pior das políticas, os cristãos têm a seu crédito a fundamental separação entre Deus e César, entre a Igreja e o Estado e entre a Bíblia e a Constituição. Não é pouca coisa.


Antonio Barreto, 8-1-2016 no Diário de Notícias

27.1.17

VITA ACTIVA: THE SPIRIT OF HANNAH ARENDT official US trailer

VITA ACTIVA: THE SPIRIT OF HANNAH ARENDT official US trailer



Vejam este documentário! A História repete-se e é indispensável pensar e conhecer a raiz das coisas para que possamos fazer as escolhas acertadas e pensar pela nossa mente!

19.1.17

15.1.17

Nós Estamos Aqui: O Pálido Ponto Azul



O mundo mudou decisivamente nas últimas décadas. Vão naturalmente desaparecendo aqueles que ajudaram a traçar o melhor do nosso mundo e não encontramos nos actuais lideres alguém que possa acompanhar a grandeza e a presença de espírito dos que partem. Apesar do mundo em geral estar hoje melhor, especialmente para os milhões que têm saído da miséria extrema, há um outro movimento que ameaça escurecer a luz que conquistámos. Pelo menos na Europa, há uma mudança em movimento, quase um retrocesso, que ameaça os valores que conquistámos em tantas guerras e lutas; uma ameaça que vem da ignorância, da arrogância, do medo; uma sombra de descrença nas soluções políticas; um processo complexo de descrença que também passa pelo pior que a União Europeia tem: uma tecnocracia errática que afasta as instituições dos cidadãos porque esquece a dimensão cultural e histórica das populações tando foco ao acessório em detrimento do essencial. É bom rever este pequeno video que nos lembra que procurar a paz e a tolerância é essencial, porque só a partir dai podemos desenhar um futuro melhor para todos.

O pálido ponto azul 2 - Carl Sagan

14.1.17

O Amor e o Tempo

Pela montanha alcantilada 
Todos quatro em alegre companhia, 
O Amor, o Tempo, a minha Amada 
E eu subíamos um dia. 

Da minha Amada no gentil semblante 
Já se viam indícios de cansaço; 
O Amor passava-nos adiante 
E o Tempo acelerava o passo. 

— «Amor! Amor! mais devagar! 
Não corras tanto assim, que tão ligeira 
Não pode com certeza caminhar 
A minha doce companheira!» 

Súbito, o Amor e o Tempo, combinados, 
Abrem as asas trémulas ao vento... 
— «Porque voais assim tão apressados? 
Onde vos dirigis?» — Nesse momento, 

Volta-se o Amor e diz com azedume: 
— «Tende paciência, amigos meus! 
Eu sempre tive este costume 
De fugir com o Tempo... Adeus! Adeus! 


António Feijó , (1859 -1917) , in 'Sol de Inverno' 

10.1.17

Mario Soares, o europeu

Patriota, sim, mas europeu. Ou um europeu patriota, como devíamos ser todos.
Talvez a morte de Mário Soares, desfecho previsível há algum tempo, permita finalmente esclarecer um equívoco, usado por tanta gente contra o ideal europeu, particularmente nos últimos anos e nomeadamente no rescaldo das várias crises europeias – das dívidas soberanas, do euro, dos refugiados, da democracia liberal:
Esse equívoco consiste na ideia de que não podemos ser a um tempo profundamente patriotas e convictamente europeus, adeptos da integração dos povos europeus num projecto como o da União Europeia e em simultâneo apaixonados pelo nosso país, as nossas gentes, a nossa identidade (no caso da portuguesa) milenar, periférica, humana, aventureira, universalista.
Mário Soares disse-o várias vezes, em entrevistas a órgãos de comunicação, em momentos distintos da sua vida pública: acreditava na Europa, acreditava na União Europeia, e era um português de lei, que amava o seu país acima de tudo o resto. Como eu, aliás, como tantas daqueles que acreditamos nesta visão de um continente em paz, protegido pelo cimento de interesses comuns da guerra, da devastação, da miséria, que sempre o assolou, no que foi, ao longo dos séculos, o traço distintivo principal da Europa, esse continente turbulento, como lhe chamou, creio, Churchill.
Há uma história sobre Mário Soares repetidas vezes evocada, contada por muita gente, mas que não resisto a repetir: em 1976, recém primeiro-ministro da jovem democracia portuguesa, reuniu no Hotel Palace, no Estoril, os economistas portugueses mais reputados de então sobre a hipótese de um pedido de adesão às Comunidades Europeia. Praticamente todos sugeriram que Portugal assinasse um qualquer tratado de associação, mas descartaram a hipótese de adesão, para a qual o país não estaria preparado. No final da reunião, Soares decidiu: e o pedido foi feito pouco tempo depois.
Portugal aderiu em 1986 à então Comunidade Europeia graças em grande parte à sua acção. A verdade é que, depois de um arranque auspicioso das negociações, o processo de adesão sofreu atrasos, arrastou-se, pareceu quase, a certa altura, condenado a não se concretizar. A vontade política da Europa dos dez – que incluía já a Grécia – em concluir a adesão portuguesa atingiu um mínimo preocupante em 1983.
Mário Soares, primeiro-ministro do recém-formado governo do Bloco Central, afirmou então publicamente que Portugal não estava disposto a esperar indefinidamente pela adesão. Que a CEE tinha de tomar uma decisão. Soares escolhera para chefe das negociações um europeísta convicto, e teimoso: Ernâni Rodrigues Lopes, seu ministro das finanças. Num país em crise económica aguda (provavelmente a maior até à crise de 2009/11), a adesão à CEE torna-se no país a questão política principal.
Mas o processo continua a arrastar-se. Soares impacienta-se e ameaça olhar para outras paragens, em alternativa à CEE. A França coloca obstáculos, adia uma decisão até às eleições de 1984 para o Parlamento Europeu. No Conselho Europeu de Fontainebleau, em Junho desse ano, os líderes europeus chegam a acordo sobre o delicado dossiê da chamada compensação britânica, um dos principais obstáculos à conclusão do processo de adesão de Portugal (e também de Espanha). No rescaldo de Fontainebleau, Miterrand promete a “son ami” Soares que o dossiê português estará fechado até 30 de Setembro.
Mas a adesão portuguesa continua a marcar passo. E Soares irrita-se: chama os embaixadores europeus em Portugal, dá-lhes conta da sua insatisfação. E exige que seja afirmada inequivocamente a irreversibilidade da adesão portuguesa. No dia 24 de Outubro, as instituições europeias assinam em Dublin um “constat d’accord”, documento exclusivamente político, que sela o processo e onde, sem tibiezas, Comissão e Conselho estabelecem uma data para a adesão.
Portugal será europeu a 1 de Janeiro de 1986, depois de uma cerimónia nos Jerónimos, no dia 12 de Junho de 1985, em que Mário Soares é figura de proa; as imagens desse momento passam vezes sem conta, ano após ano, nas televisões portuguesa. E Soares conseguiu, feito simbólico por excelência, que a assinatura portuguesa precedesse a espanhola – a qual terá lugar nessa mesma tarde -, uma espécie de “cavalo de batalha” do então primeiro-ministro e futuro Presidente de Portugal.
Nos últimos anos, Mário Soares mostrou-se desencantado com a evolução da Europa. Mas entenda-se bem que nunca pôs em causa o ideal europeu e a ideia antiga, grandiosa e bela, de uma integração profunda dos povos do continente. Teria aliás, na sua vida, mais alguns encontros com a Europa da União, sendo por exemplo deputado europeu – e um dos mais respeitados que pisou o hemiciclo de Estrasburgo, apesar do “faux pas” da candidatura à Presidência do Parlamento Europeu, que podia ter facilmente conquistado se tivesse tido a paciência de esperar meia legislatura (2 anos e meio); mas ele era assim, impaciente, político até à medula, apressado, mesmo na velhice, sobretudo na velhice, sempre e ainda com projectos, a olhar para o futuro.
Soares amava a paz, a democracia e a liberdade e sabia que só a integração, baseada nos valores europeus da solidariedade e da comunhão de interesses entre os seus países, as garantia.
Mário Soares era um patriota e um europeu. Pode ser que a sua morte, inevitável como todas, marque também, pelo menos em Portugal, o princípio do fim do maior dos equívocos: o de que a União Europeia é inconciliável com as soberanias nacionais.
Ela, sabia-o ele, é o garante da soberania dos Estados europeus, porque é ela que lhes assegura a paz e a estabilidade de que a Europa tanto carece.
Também esse legado nos deixa Mário Soares.
- Paulo de Almeida Sande in Obervador
http://observador.pt/opiniao/mario-soares-o-europeu/http://observador.pt/opiniao/mario-soares-o-europeu/

2.1.17

FELIZ ANO NOVO PARA TODOS OS DESTINOS !


A ascensão da nova ignorância

Entre os temas tabu dos nossos dias está a ignorância. Parece que falar da ignorância coloca logo quem o faz numa situação de arrogância intelectual, o que inibe muita gente de a nomear. Mas não há muita razão para se enfiar essa carapuça, tanto mais que o problema é enorme e está agravar-se e a assumir novas formas, socialmente agressivas. Acompanha outro tipo de fenómenos como o populismo, a chamada “pós-verdade”, a circulação indiferenciada de notícias falsas, e, o que é mais grave, a indiferença sobre a sua verificação. Não explica, nem é a causa de nenhum destes fenómenos, mas é sua parente próxima e faz parte da mesma família. É, repetindo uma fórmula que já usei, como se de repente se deixasse de ir ao médico, e se passasse a ir ao curandeiro.
Uso aqui uma noção utilitária de ignorância que pode ser simplista, mas que serve. Ser ignorante é não ter os instrumentos para se mover no mundo que nos rodeia, ser sujeito mais do que ser actor, não conseguir atingir o empowerment que é suposto se poder ter para se actuar conforme as circunstâncias, de modo a crescer, ser capaz, viver uma vida qualificada e tirar dela uma experiência enriquecedora, controlando-se a si próprio tanto quanto é possível, e não menosprezando as condições para se ser feliz, “habitualmente” feliz. Isto é muito Dale Carnegie, mas serve, não é preciso complicar à partida.
Percebe-se, usando esta definição, que a ignorância pode ser descrita como a pobreza, cujos efeitos e condições de superação são exactamente do mesmo tipo. A ignorância é uma forma de pobreza e o seu crescimento acentua a pobreza em geral e, mais do que a pobreza, a exclusão e a diferenciação social. É até um dos mecanismos mais eficazes para aumentar a distância entre pobres e ricos, e para estabilizar um status quo nos pobres, que, como a droga, tem efeitos de satisfação instantânea, de paraíso artificial, ou, se se quiser de “ópio do povo”.
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Faço uma distinção entre aquilo a que chamo “a antiga ignorância” e “a nova”. A antiga tem muito que ver com a baixa qualificação profissional, com a insuficiente escolaridade, com a má qualidade de muitas escolas, sem meios, sem professores preparados, com o analfabetismo funcional. É um factor do nosso atraso e ajuda a potenciar os efeitos perversos da nova ignorância, mas não a explica por si só.
Contentamo-nos muito com a diminuição estatística da antiga ignorância e isso em Portugal é mais do que compreensível. O sucesso da escola, e da escolarização, o ensino para adultos, as melhorias verificadas em disciplinas como Português e Matemática são instrumentos fundamentais, entre outras coisas, para a mobilidade social, mas, mesmo que tenhamos, como agora se diz, as gerações mais qualificadas, estamos cegos quanto ao crescimento da nova ignorância, não só em aliança e em tandem com a antiga, mas assumindo novas formas e efeitos. O facto de haver um modismo tecnológico e se confundir a utilização de gadgets, aliás bastante rudimentar, com um novo saber, que implica novas competências, esconde essa regra básica de que as literacias para os usar vêm do sistema escolar a montante e a possibilidade de os usar para uma melhoria social só existe a jusante se acompanhar uma evolução social que não se está a verificar. Mais do que uma evolução, há uma involução.
A antiga ignorância assentava numa carência, numa falta, a nova assenta numa ilusão. É por isso que a antiga ignorância era vista como um problema da sociedade e a nova é vista como um “progresso”, ou como uma tendência contra a qual é inútil lutar. Isso tem muito que ver com uma ideologia corrente face às novas tecnologias, em particular aquelas que têm imediatos efeitos sociais como os telemóveis, as redes sociais, e certos modos de usar os videojogos, a realidade virtual e mesmo o computador e a televisão.
O primeiro efeito nefasto dessa ideologia é a crença de que são as novas tecnologias que estão a mudar a sociedade. É o contrário. É a mudança da sociedade que potencia o uso de determinadas tecnologias, que depois acentuam os efeitos de partida. Muitas tecnologias de “contacto” — como programas de “presentificação”, que fazem as pessoas olharem para os seus telemóveis centenas de vezes por dia, e os adolescentes, na vanguarda desta nova ignorância juntamente com os seus jovens pais adultos, passarem o dia a enviarem mensagens sem qualquer conteúdo — só têm sucesso porque se deu uma deterioração acentuada das formas de sociabilidade interpessoais, substituídas por um Ersatz de presença e companhia tão efémero que tem de estar sempre a ser repetido. Sociedades sem relações humanas de vizinhança, de companhia e amizade, sem interacções de grupo, sem movimentos colectivos de interesse comum dependem de formas artificiais e, insisto, pobres, de relacionamento que se tornam adictivas como a droga. Não há maior punição para um adolescente do que se lhe tirar o telemóvel, e alguns dos conflitos mais graves que ocorrem hoje nas escolas estão ligados ao telemóvel que funciona como uma linha de vida.
Nada é mais significativo e deprimente do que ver numa entrada de uma escola, ou num restaurante popular, ou na rua, pessoas que estão juntas, mas que quase não se falam, e estão atentas ao telemóvel, mandando mensagens, enviando fotografias, vendo a sua página de Facebook, centenas de vezes por dia. Que vida pode sobrar?

Ainda há-de alguém convencer-me que este comportamento lá por usar tecnologias modernas representa uma vantagem e não uma patologia. Faz parte de sociedades em que deixou de haver silêncio, tempo para pensar, curiosidade de olhar para fora, gosto por actividades lentas como ler, ou ver com olhos de ver. E se olharmos para os produtos de tanta página de Facebook, de tanta mensagem, de tanto comentário não editado, de tanta “opinião” sobre tudo e todos, escritas num português macarrónico e cheio de erros, encontramos fenómenos de acantonamento, de tribalização, de radicalização, de cobardia anónima, de ajustes de contas, de bullying num mundo que tem de ser sempre excitado, assertivo e taxativo. Um dos maiores riscos para o mundo é ter um presidente dos EUA que governa pelo Twitter como um adolescente, com mensagens curtas, sem argumentação, que, para terem efeito, têm de ser excessivas e taxativas.

José Pacheco Pereira, 31.12.2016 Público