27.5.14

o passado

Sines, Portugal, anos 60

26.5.14

Profano, prático, público, político, presto, profundo, precário,

Profano, prático, público, político, presto, profundo, precário, 
improvável poema,
contudo
nem eu estava à espera dos bárbaros que viriam devastar 
a terra
porque éramos inocentes,
nós que só queríamos o silêncio,
e a voz diria que se fosse preciso traziam Deus,
e é sim possível que trouxessem qualquer espectáculo com
cristos nus e saltimbancos de feira,
e paus vermelhos,
e paus amarelos,
paus virgens com linho e algodão pintado,
paus compridos com petúnias como borboletas:
e eu achava inadmissível,
e tinha a meio da minha própria linguagem a dor sozinha 
em que súbito se repara,
e de que o poema se faz carregado e quente,
e não explicava nada,
e lá vinham os bárbaros como no episódio de Alexandria,
mais uma vez depois de Cavafis,
incendiada pelos soldados de César e do califa Omar,
por franceses e ingleses e todos os outros bárbaros,
por todos os incapazes da medida intrínseca,
a densa meditação que conduz ao poema puro,
e nunca, nunca mais a paixão,
e então o centro do mesmo mundo era o centro de Alexandria,
olhos fechados víamos através das pálpebras a nossa vida ardente 
                               e muda e lenta,
e a carne desde o imo desfazia-se num soluço,
magoada, humana,
alexandrina,
e o mundo era pequeno,
mais pequeno com certeza que um poema de um verso único,
universo:
oh nunca mais quero viver no mundo!

Herberto Helder, in Servidões, 2013

Portugal, uma praia ao Sul


25.5.14

O mapa



Sempre senti a matemática como uma presença
Física; em relação a ela vejo-me
Como alguém que não consegue
Esquecer o pulso porque vestiu uma camisa demasiado
Apertada nas mangas.
Perdoem-me a imagem: como
Num bar de putas onde se vai beber uma cerveja
E provocar com a nossa indiferença o desejo
Interesseiro das mulheres, a matemática é isto: um
Mundo onde entro para me sentir excluído;
Para perceber, no fundo, que a linguagem, em relação
Aos números e aos seus cálculos, é um sistema,
Ao mesmo tempo, milionário e pedinte. Escrever
Não é mais inteligente que resolver uma equação;
Porque optei por escrever?Não sei. Ou talvez saiba:
Entre a possibilidade de acertar muito, existente
Na matemática, e a possibilidade de errar muito,
Que existe na escrita (errar de errância, de caminhar
Mais ou menos sem meta) optei instintivamente
Pela segunda. Escrevo porque perdi o mapa.

poema de Gonçalo M. Tavares

um dos rostos do Mal

c. 1940s: Adolf Hitler with a bird on his shoulder | Retronaut

Eu não quero mudar o mundo


Eu não quero mudar o mundo. 
Não tenho tempo para isso. 
Quem quer mudar o lugar do mundo actua como quem muda o lugar de um móvel: 
empurra primeiro para um lado, 
foi força demais, 
empurra então para o outro lado, 
agora com força de menos, 
depois mais um pequeno toque para lá 
e um ainda mais pequeno toque para lá, 
e agora sim: 
o móvel está no lugar. 
Depois abrimos o móvel e vemos que os copos que estavam 
lá dentro se encontram todos partidos. Estão a ver? 

Os copos todos partidos. Que aborrecimento. 
Não nos lembrámos da fragilidade do vidro. 

Gonçalo M. Tavares, in “O homem ou é tonto ou é mulher” 

Cantoria


Fala a voz dos anjos cantores em Florença.
Eles sustêm na última nota da voz o vazio,
enquanto nos frescos do alto voam serafins
e ante nós cresce como um símbolo a acha
de armas, a procissão breve dos anos.
Antecipam o juízo na cauda dos cometas,
rumores de batalhas, cavalos domando
os chãos de silêncio onde nos deitamos,
ovelhas de alma dispersa e faces aquietadas
ante o discurso longo do sono.
Cantam as pazes da alma indestrutível
iluminando a noite de archotes com a graça
das palavras, a sua e nossa compaixão.
Esses campos de solidão medieval
que se demoram, reflectindo o transepto
das catedrais, na bênção da primeira neve.
Sobre eles desce, a perfeição dos plainos da Flandres,
a vaidade de um último olhar. Que o chão
nos sobreviva, górgonas, e a funda voz do heraldo
desenhando cúmulos com os dedos no horizonte.



Paulo Teixeira, in o futuro em anos-luz

24.5.14

Os dias bons







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Duas Vezes Nada



É assim, amiga. Encontramo-nos
quando calha nos bares de antigamente,
deixando que sobre o tampo azul
das mesas volte a pousar
um baço cemitério de garrafas.

Constatamos o pior, os seus aspectos.
Corpos e livros que foram ficando
por ler na voracidade da noite de Lisboa.
De facto, crescemos em alcoolémia,
acordamos tarde, em pânico,
e perdemos os dias e os dentes
com uma espécie de resignação.
Não temos, ao que parece, serventia.

Sorrimos um pouco, ao terceiro
gin, como quem renasce para a morte,
seus gestos de ternura ou de exuberância.
Talvez tenhamos calculado mal
o ângulo da queda, esta vitória
sem nobreza dos venenos todos.

Mas agora é tarde. Tudo fechou
para nós, para sempre. O amor,
o desejo, até o onanismo da destruição.
Antes de procurares a esmola
do último táxi, fica esta imagem
parada, a desvanecer-se
no frio mais frio da memória:

não dois corpos sentados a trocarem
medo, cigarros e palavras póstumas,
mas duas vezes nada, ninguém,
o silêncio da noite destronando
as cadeiras onde por razão nenhuma
nos sentámos. Os anos, amiga, passaram.



Manuel de Freitas

um Livro


18.5.14

Os Dias Bons


As Uvas

Que me não fujam as rosas
murchando co'a Primavera:
gosto das uvas em cachos
maduros ao sol da encosta
 —glória deste meu val',
pendendo em brilho de pérolas,
prazer do Outono dourado:
oblongas e transparentes
como dedos de donzela.

Alexander  Pushkin 1799-1837

some of the Russians


Members of the Moscow literary group Sreda: Top row from left: Stepan Skitalets, Fyodor Chaliapin, Yevgeny Chirikov; bottom row from left: Maxim Gorky, Leonid Andreyev, Ivan Bunin, Nikolay Teleshov- 1902

Há dias

Há dias em que julgamos

que todo o lixo do mundo

nos cai em cima

depois


ao chegarmos à varanda avistamos

as crianças correndo no molhe

enquanto cantam

não lhes sei o nome

uma ou outra parece-me comigo

quero eu dizer :

com o que fui

quando cheguei a ser luminosa

presença da graça

ou da alegria

um sorriso abre-se então

num verão antigo

e dura

dura ainda.



Eugénio de Andrade

17.5.14

Vivemos "como se"....

(...) 
Nietzsche escreveu que o homem precisa de viver "como se" para aceitar o mundo que o rodeia. Com efeito, sabemos que humanidade, tal como hoje a conhecemos, desaparecerá um dia, e possuímos uma imagem coperniciana e mesmo einsteiniana do universo que nos acolhe, mas vivemos "como se" o Sol nunca se fosse apagar, "como se" desconhecêssemos o significado da palavra glaciação, "como se" estivéssemos ainda na época de Ptolomeu. Os cientistas que, por definição, costumam ser bruscos nas suas conclusões, talvez porque o seu trabalho não consiste em consolar ou entreter, mas em informar e compreender, garantem além disso que o nosso sistema é regido pela entropia, o que significa que este mundo, como tudo o que nele habita, se encaminha para o caos, para a desordem, para a decomposição. 
E no entanto, enquanto escrevo coloco a minha lupa sobre todas as histórias que me rodeiam - algumas reais, outras fictícias, todas possíveis - sinto que estou a empenhar a linguagem na construção de um arremedo de ordem, de uma organização superior, de uma estrutura resistente a qualquer tentação de ser dissolvida, absorvida pela desordem. Ao escrever, ao fim ao cabo, não estou a tentar evitar a entropia, a desorganizaçao, a morte da forma?" (...)

Ricardo Menéndez Salmón in A Luz é mais antiga do que o Amor

Picasso with dove

Picasso with dove, Paris, 1945 - by James Lord @ retronaut

15.5.14

Henreich von Kleist versus Johann Wolfgang von Goethe


? Como distinguir o mau ladrão do bom ladrão? o mau ladrão
rouba a cinza e o bom ladrão rouba o fogo
? E como saber se é fogo ou cinza o que há à mão do roubo?
? Será que a cinza é só cinzenta e o fogo roubado queima até 
ao osso?
o fogo é posto ali para ser roubado pelos loucos,
a cinza é posta às portas do Carnaval para espalhar no rosto,
para saber-se de quem foram a mão e o rosto do roubo,
e há isto: quem tem a mão queimada tem tudo fogo posto,
obra, vida e corpo,
e no fundo da mão do outro não há nada, mesmo na mão 
cheia de ouro
(ou nela sobretudo)


Herberto Helder, in Servidões

8.5.14

Duas Paisagens Sobrepostas


1 - Em todo o momento de actividade mental acontece em nós um duplo fenómeno de percepção: ao mesmo tempo que tempos consciência de um estado de alma, temos diante de nós, impressionando-nos os sentidos que estão virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem, para conveniência de frases, tudo o que forma o mundo exterior num determinado momento da nossa percepção. 
2 - Todo o estado de alma é uma passagem. Isto é, todo o estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso espírito. E - mesmo que se não queira admitir que todo o estado de alma é uma paisagem - pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode representar por uma paisagem. Se eu disser "Há sol nos meus pensamentos", ninguém compreenderá que os meus pensamentos são tristes. 
3 - Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, tempos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens. Ora, essas paisagens fundem-se, interpenetram-se, de modo que o nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da paisagem que estamos vendo - num dia de sol uma alma triste não pode estar tão triste como num dia de chuva - e, também, a paisagem exterior sofre do nosso estado de alma - é de todos os tempos dizer-se, sobretudo em verso, coisas como que «na ausência da amada o sol não brilha», e outras coisas assim. De maneira que a arte que queira representar bem a realidade terá de a dar através duma representação simultânea da paisagem interior e da paisagem exterior. Resulta que terá de tentar dar uma intersecção de duas paisagens. Têm de ser duas paisagens, mas pode ser - não se querendo admitir que um estado de alma é uma paisagem - que se queira simplesmente interseccionar um estado de alma (puro e simples sentimento) com a paisagem exterior. [...] 

Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro'

4.5.14

strandbeest evolution



esculturas que se movem com o vento...

Lugares

Odeon de  Herodes, Greece

O que se sente e não se consegue dizer

O que habitualmente se sofre (se sente) não se pode contar. Não é só porque isso é normalmente ridículo (porque a grande maior parte do que se pensa e sente é ridículo) e só o que é grande é que cai bem e vale portanto a pena dizer-se. É que o dizer-se altera o que se diz. O sentir é irredutível ao dizer. Só o estar sofrendo diz o sofrer. Na palavra ninguém o reconhece ou reconhece-o de outra maneira, essa maneira em que já o não reconhece o que o conta. Mas dizia eu que a generalidade do que se pensa, sente, é ridícula. São raros os momentos de «elevação». A quase totalidade do tempo passamo-la distraídos, alheados em ideias sem interesse, nascidas de coisas sem interesse, as coisas que vai havendo à nossa volta ou no nosso divagar imaginativo ou que nem sequer chega a haver porque há só a abstracção total no quedarmo-nos pregados às coisas que nem vemos nem nos despertam ideia alguma e estão ali apenas como ponto de fixação do nosso absoluto vazio interior. 
Vergílio Ferreira