Os Portugueses têm algum medo de ser portugueses. Olhamos em nosso
redor, para o nosso país e para os outros e, como aquilo que vemos pode doer,
temos medo, ou vergonha, ou «culpa de sermos portugueses». Não queremos ser
primos desta pobreza, madrinhas desta miséria, filhos desta fome, amigos desta
amargura. Os Portugueses têm o defeito de querer pertencer ao maior e ao melhor
país do mundo. Se lhes perguntarmos “Qual é actualmente o melhor e o maior país
do mundo?”, não arranjam resposta. Nem dizem que é a União Soviética nem os
Estados Unidos nem o Japão nem a França nem o Reino Unido nem a Alemanha. Dizem
só, pesarosos como os kilogramas nos tempos em que tinham kapa: «Podia ter sido
Portugal...» E isto que vai salvando os Portugueses: têm vergonha, culpa, nojo,
medo de serem portugueses mas «também não vão ao ponto de quererem ser outra
coisa».
Revela-se aqui o que nós temos de mais insuportável e de
comovente: só nos custa sermos portugueses por não sermos os melhores do mundo.
E, se formos pensar, verificamos que o verdadeiro patriotismo não é aquele de
quem diz “Portugal é o melhor país do mundo” (esse é simplesmente parvo ou
parvamente simples), mas, sim, de quem acredita, inocentemente, que Portugal
«podia ser» (ou ter sido) o melhor país do mundo e (eis a parte fundamental, que
separa os insectos dos cicofantas) «tem pena que não seja», uma pena daquelas
que ardem para toda a vida nos peitos profundos das pessoas boas.
(...)
Ser
português é «difícil». O resto do mundo não compreende que os Portugueses são
especiais, diferentes, bastante giros, bem-educados, antigos, espertos, casos
sérios. O resto do mundo acredita sinceramente que o mundo seria exactamente o
mesmo sem os Portugueses. Para a grande maioria da população da Terra, a própria
«existência» de Portugal é uma surpresa. E não se julgue automaticamente que se
trata de uma grande surpresa ou, sequer, de uma surpresa «boa». É mais uma
surpresa do género “Ah, sim?”. Como quem aprende que o «baseball» teve origem
nos «rounders ingleses». Ah, sim? Que giro! Agora sai da frente do televisor que
eu quero ver se este Babe Ruth era tão bom como diziam. Para o resto do mundo,
os feitos dos Portugueses não pertencem à história fundamental do Universo.
Pertencem, quando muito, à secção dos passatempos, do “Não me digas!” e do
“Acredite se quiser”. Ser português é um ser delicado. Ser português não é «ser
humano». É ser que tem muito para fazer só para ser «vivo».
Os políticos
dizem que é preciso andar para a frente, modernizar, desenvolver, «mudar»
Portugal, presumivelmente para melhor, porque este (nisto estão todos de acordo)
não presta. Os poetas sonham com países que nunca existiram ou existirão, ou que
já existiram e jamais existirão outra vez. Ninguém está contente com o que é, ou
com onde está, ou com o que tem. Os Portugueses, o povo, a nação, os ditos, os
implicados, envolvidos e lixados, esses nem ideia têm ou fazem — para eles a
própria noção de Portugal foi um raio de ideia para começar. Mas o que é preciso
não é nem tão drástico nem tão espectacular. O que é preciso é «continuar»
Portugal.
Continuar Portugal não é uma acção delicada, ou uma campanha
urgente, ou uma tarefa que exija o sacrifício de todos os cidadãos. É
simplesmente continuar a perguntar, a barafustar, a amaldiçoar o dia em que se
nasceu desta cor, nesta pele, com este coração mole e fácil de apertar e
espremer. Continuar Portugal é acreditar que a vida seria pior sem ele, pior se
a Europa começasse pela Espanha, pior se fôssemos suíços ou belgas ou
finlandeses. Continuar Portugal é ser português e dizer “Pronto, que se lixe, o
que é que eu hei-de fazer?”. E acreditar na diferença que faz a nossa maneira de
ser, e de sermos portugueses, como um cardiologista acredita que o coração foi
feito para continuar a bater.
E foi. E, o que é mais engraçado, continua!
Miguel Esteves Cardoso, in Os Meus Problemas, 1988
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