14.4.13

HOLANDA



Um poeta está sentado na Holanda. Pensa na tradição. Diz para si mesmo:
eu sou alimentado pelos séculos, vivo afogado na história de outros homens. E
a sua alma é atravessada pelo sopro primordial. Mas tem a alma perdida: é um
inocente que maneja o fogo dos infernos. Abre-se ao fundo da sua meditação
holandesa um grande lago: a solidão, e em volta passeiam vacas. A Holanda
agora é isto: vacas, e — no centro — o inferno, a revolucionária inocência de
um poeta sentado.
— Por quem me tomam? — pode ele perguntar. — O que eu quero é o
amor.
E sempre assim, sempre: cidades inexplicáveis no meio da terra ou prados
imensos onde se tem medo. Prados para vacas, não para um poeta di-la-ce-ra-do
por uma tormentosa inocência.
Já não escreve poemas nem pergunta às pessoas o seu nome. Ele próprio,
visto estar destinado à inteira perdição, vai perdendo o nome pelo país adiante.
Agora vigia a paz devoradora dos animais, as coisas, a imobilidade. Vou partir
— imagina. As cidades ardem, os campos enlouquecem. Um poeta tem de
partir, repartir, repartir-se. Um poeta deve ser uno. O inferno não o deixa. Às
vezes lamenta-se: Sinto-me como se tivesse percorrido o deserto; não sei nada.
À noite falava baixo, conhecendo que não possuía a protecção das coisas e a sua
vida estava a ser corroída por uma vocação menos que humilde: degradante.
Não servia para nada; essa era a sua mais implacável vocação. Ficava sentado a
ver os homens holandeses cuidarem dos animais e da terra e a vigiarem o céu. Os
homens holandeses invocavam os poderes que se debruçavam, um pouco como
holandeses, sobre o exercício humano.
Na Holanda o Demónio é negativo. O poeta sabia da irremissível solidão do 
Demónio, e pedia por ele: Piedade para o Demónio, piedade para a 
solidão demoníaca.
Na Holanda é assim. O Demónio está no meio das vacas: não escreve poemas,
não pode exercer os dons. Pensa, perde o nome. Quem esperaria dele que
trabalhasse a terra ou protegesse as alimárias?
Pela noite fora o poeta mantinha-se o mais deitado possível, com o talento
voltado para o ar, ouvindo os pequenos ruídos do mundo. E pensava: Como se
atreve a terra a tamanha placidez? Ou estarei eu marcado por alguma culpa
insondável? De onde descendo, que não sou amado dos holandeses nem me
acalmo e participo nas tarefas?
Mas uma noite recebeu a visitação. O seu espírito iluminou-se: Tu és um
homem. Sim, sou um homem — disse — mas não sou holandês. Aliás, não se
compreendia bem o que fosse aquilo de ser um homem.
— Para onde pensam que vou ou de onde venho? — perguntaria. — Eu
aspiro ao amor.
Percebe-se isto? Holanda, Holanda, país conquistado às águas! (Não é assim
que se diz?). Holanda erguida devagar ao concreto. Entretanto o poeta 
abisma-se no espírito demoníaco e invoca uma protecção obscura — a piedade — 
para o Demónio.
Pensa furiosamente na tradição, e toda a sua memória está corrompida por
uma ardente e desordenada tristeza. O sangue é negro desde a raiz. Porque
ninguém sabe onde a corrupção completa a inocência.
O quarto fica sobre uma loja onde se vendem leites, natas, queijos, cremes.
Tudo isso é gordo e branco. Ele desce as escadas, pára em frente da leitaria.
Que é isto? — pergunta. Refere-se a Deus, devorador de natas. — Há uma
confusão qualquer — supõe. — Sou um inocente. Afastem Deus daqui. Além
disso, estou amaldiçoado.
O coração já não pode mais. Entre os bichos e as plantas, acontece-lhe dizer:
Que fertilidade! — e a vida corrompe-se nos próprios fundamentos. Sente-se
como um apóstolo sem fé. Desejaria morrer, arder no fogo apocalíptico das
cidades. Ou ser devorado pela inteligência, estiolar de excessiva lucidez no meio
da loucura campestre. Tradição, compreende uma: ama-a. Perdeu o nome, essa
sabedoria. Beleza, é pouco. Verdade, é muito. Trata-se de um termo subtil que
participa de uma e outra, que se tornou inútil, insensato.
— Não penso na minha alma — diria ele — nem na carne. Não me ponho
a perguntar se ganharei a salvação. Eu preciso de amor. Preciso aprender.
Mas parece que na comunidade já tudo se aprendera, estava tudo ensinado e
sabido desde sempre. E os homens pensavam unicamente em preservar-se do
sofrimento; desejavam que a linguagem ficasse intacta, sem mácula.
Ele olhava o sol verde entre as patas das vacas e supunha poder envenenar-se
legando o cadáver à confusão holandesa. E como se alimentaria essa confusão,
como seria divertido o pequeno quadro holandês! — Senhor, que lhe aconteceu?
Salva-lhe a alma se puderes. Ele era um estrangeiro: envenenou-se. Nada mais
sabemos. Que mal te fez a Holanda para a castigares assim?
Muito lentamente, o seu amor desenvolveu-se. Era um amor que se aprendia
a si próprio, cheio de medo e dúvida.
O nosso amor pode atingir tudo? — perguntava. Ou perguntava então: —
Até onde vão os direitos de um... homem? Ou de um poeta?
Na Holanda não se fazem fogueiras ao ar livre: nada se percebe do fogo.
A Holanda é um país cada vez maior. O mar rouba-lhe meio metro, e logo os
holandeses roubam dois metros de terra ao seio fervente das águas.
— Não compreendo a justiça cósmica.
E murmura para si: Nada conhecem das coisas do fogo. Os dons mais
profundos do homem estiolam dentro deles. Deverei amá-los?
— Amar o quê, quem? — pergunta a visita. — Referes-te aos homens
holandeses ou aos dons que esqueceram?
E ele não sabe realmente aquilo a que desejava referir-se, o que lhe inspirava
o desespero. Sentado na Holanda, pensa: — Piedade.
Para ele? Para os homens holandeses?
Em que jogos se enreda uma inocência!

Herberto Helder in Os Passos em Volta, 1997

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