Sim, a eternidade é o nosso signo. Não
começámos a existir nem o fim da existência o entendemos como fim. Por isso não
sentimos que não existimos antes de começarmos a existir mas apenas que tudo
isso que aconteceu antes de termos existido foi apenas qualquer coisa a que por
acaso não assistimos como a muito do que acontece no nosso tempo. E à morte
invencivelmente a ultrapassamos para nos pormos a existir depois dela. O prazer
que nos dá a história do passado, sobretudo os documentos que no-lo dão
flagrantemente, vem de nos sentirmos prolongados até lá, de nos sentirmos de
facto presentes nesse modo de ser contemporâneos. Mas sobretudo há em nós uma
memória-limite, uma memória absoluta que não tem nada de referenciável e se
prolonga ao sem fim. Do mesmo modo há o futuro que é pura projecção de nós,
apelo irreprimível a um amanhã sem termo ou sem amanhã. Por isso a morte nos
angustia e sobretudo nos intriga por nos provar à evidência o que profundamente
não conseguimos compreender. Mas sobretudo a eternidade é o que se nos impõe no
instante em que vivemos. O tempo não passa por nós e daí vem a impossibilidade
de nos sentirmos envelhecer. Sabemo-lo na realidade, mas é um saber de fora.
Repetimo-lo a nós próprios para enfim o aprendermos, mas é uma matéria difícil
que jamais conseguimos dominar. Por isso estranhamos que os nossos filhos
cresçam e se ergam perante nós como adultos que não deviam ser. Por isso
estranhamos os jovens pela sua estranheza de que quiséssemos porventura ser
jovens como eles. Instintivamente sentimos que é um abuso eles tomarem o lugar
que nos pertencia e nos desalojem do lugar que era nosso. Por isso sofremos, não
bem por perdermos o que nos pertencia, mas pela dificuldade de isso entendermos.
Há uma oposição frontal entre o nosso íntimo sentir e a realidade que isso nos
desmente. Somos eternos, mas vivemos no tempo. Somos imutáveis, mas tudo à nossa
volta se muda e nos impõe a mudança. Somos divinos, mas de terrena condição. É
essa condição que sabemos, mas não conseguimos aprender. Nesta oposição se gera
toda a grandeza do homem e a tragédia que o marcou. Os que se fixam num dos
termos são deuses iludidos ou animais que não chegaram a homens. Porque o
verdadeiro homem é Deus por vocação e animal por necessidade.
Vergílio Ferreira in Conta-Corrente 3
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