El-rei D. Pedro, o cruel, está na janela
sobre a praceta onde sobressai a estátua municipal do marquês Sá da
Bandeira. Gosto deste rei louco, inocente e brutal. Puseram-me de
joelhos, com as mãos amarradas atrás das costas, mas levanto a cabeça, torno o
pescoço para o lado esquerdo, e vejo o rosto violento e melancólico do meu
pobre Senhor. Por debaixo da janela onde se encontra, existe uma outra em
estilo manuelino, uma relíquia, obra delicada de pedra que resiste ao
tempo. D. Pedro deita a vista distraída pela praça fechada pelos seus
soldados. Vê a igreja monstruosa do Seminário, retórica de vidraças e
nichos, as pombas que pousam na cabeça e nos braços do marquês e vê-me em
baixo, ajoelhado, entre alguns dos seus homens. O rei olha para mim com
simpatia. Fui condenado por ser um dos assassinos da sua amante favorita,
D. Inês. Alguém quis defender-me, dizendo que eu era um patriota.
Que desejava salvar o Reino da influência espanhola. Tolice. Não me
interessa o Reino. Matei-a para salvar o amor do rei. D. Pedro
sabe-o. Olho de novo para a janela onde se debruça. Ele diz um
gracejo. Toda a gente ri.
— Preparem-me esse coelho, que tenho
fome.
O rei brinca com o meu nome. O meu apelido é Coelho.
O rei brinca com o meu nome. O meu apelido é Coelho.
O
que este homem trabalhou na nossa obra! Levou o cadáver da amante de uma
ponta a outra do país, às costas da gente do povo, entre tochas e cantos
fúnebres. Foi um terrível espetáculo, que cidades e lugarejos apreciaram.
Alguém ordena que me levante e agradeça ao meu Senhor. Levanto-me e fico
bem defronte do edifício. Vejo no rés-do-chão o letreiro da Barbearia
Vidigal e o barbeiro de bigode louro que veio à porta assistir ao meu
suplício. Vejo a janela manuelina e o rei esmagado entre os blocos dos
dois prédios ao lado.
—
Senhor — digo eu —, agradeço-te a minha morte. E ofereço-te a morte de D.
Inês. Isto era preciso, para que o teu amor se salvasse.
— Muito bem — respondeu o rei.
Arranquem-lhe o coração pelas costas e tragam-mo.
De
novo me ajoelho e vejo os pés dos carrascos de um lado para o outro.
Distingo as vozes do povo, a sua ingénua excitação. Escolhem-me um sítio
das costas para enterrar o punhal. Estremeço de frio. Foi o punhal
que entrou na carne e cortou algumas costelas. Uma pancada de alto a
baixo do meu corpo, e verifico que o coração está nas mãos de um dos
carrascos. Um moço do rei espera com a bandeja de prata batida estendida
sobre a minha cabeça, e onde o coração fumegante é colocado. A multidão
grita e aplaude, e só o rosto de D. Pedro está triste, embora, ao mesmo tempo,
se possa ver nele uma luz muito interior de triunfo. Percebo como tudo
isto está ligado, como é necessário que todas as coisas se completem. Ah,
não tenho medo. Sei que vou para o inferno, visto que sou um assassino e
o meu país é católico. Matei por amor do amor — e isso é do espírito
demoníaco. O rei e a amante também são criaturas infernais. Só a
mulher do rei, D. Constança, é do céu. Pudera, com a sua insignificância,
a estupidez, o perdão a todas as ofensas. Detesto a rainha.
O
moço sobe a escada com a bandeja onde o meu coração é um molusco quente e
sangrento. Vê-se D. Pedro voltar-se, a bandeja aparecer perto do
parapeito da janela. O rei sorri delicadamente para o meu coração e
levanta-o na mão direita. Mostra-o ao povo, e o sangue escorre-lhe entre
os dedos e pelo pulso abaixo. Ouvem-se aplausos. Somos um povo
bárbaro e puro, e é uma grande responsabilidade estar à frente de um povo
assim. Felizmente o nosso rei encontra-se à altura do seu cargo, entende
a nossa alma obscura, religiosa, tão próxima da terra. Somos também um
povo cheio de fé. Temos fé na guerra, na justiça, na crueldade, no amor,
na eternidade. Somos todos loucos.
Tombei com a face direita sobre a calçada e, movendo os olhos, posso
aperceber-me de um pedaço muito azul de céu, acima dos telhados. Vejo uma
pomba passar em frente da janela manuelina. O claxon de um carro
expande-se lìricamente no ar. Estamos nos começos de junho. Ainda é
primavera. A terra está cheia de seiva. A terra é eterna. À
minha volta dizem obscenidades. Alguém sugere que me cortem o
pénis. Um moço vai perguntar ao rei se o podem fazer, mas este recusa.
—
Só o coração — diz. E levanta de novo o meu coração, e depois trinca-o
ferozmente. A multidão delira, aclama-o, chama-me assassino, cão, e
encomenda a alma ao Diabo. Eu gostaria de poder agradecer a este povo
bárbaro e puro as suas boas palavras violentas.
Um filete de sangue escorre pelo
queixo de D. Pedro, e vejo os seus maxilares movendo-se ligeiramente. O
rei come o meu coração. O barbeiro saiu do estabelecimento e está a meio
da praça com a sua bata branca, o seu bigode louro, vendo D. Pedro a comer o
meu coração cheio de inteligência do amor e do sentimento da eternidade.
O marquês Sá da Bandeira é que ignora tudo, verde e colonialista no alto do seu
plinto de granito. As pombas voam à volta, pousam-lhe na cabeça e nos
ombros, e cagam-lhe em cima. D. Pedro retira-se, depois de dizer à
multidão algumas palavras sobre crime e justiça. Aclama-o o povo mais uma
vez, e dispersa. Os soldados também partem, e eu fico só para enfrentar a
noite que se aproxima. Esta noite foi feita para nós, para o rei e para
mim. Meditaremos. Somos ambos sábios à custa dos nossos crimes e do
comum amor à eternidade. O rei estará insone no seu quarto, sabendo que
amará para sempre a minha vítima. Talvez não termine aí a sua inspiração,
e ele se torne cada vez mais cruel e mais inspirado. O seu corpo ir-se-á
reduzindo à força de fogo interior, e a sua paixão será sempre mais vasta e
pura. E eu também irei crescendo na minha morte, irei crescendo dentro do
rei que comeu o meu coração. D. Inês tomou conta das nossas almas.
Ela abandona a carne e torna-se uma fonte, uma labareda. Entra devagar
nos poemas e nas cidades. Nada é tão incorruptível como a sua
morte. No crisol do inferno manter-nos-emos todos três perenemente
límpidos. O povo só terá de receber-nos como alimento, de geração para
geração. Que ninguém tenha piedade. E Deus não é chamado para aqui.
Herberto Helder in Passos em Volta,
7ª edição, 1997
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